NORMAL

NORMAL

Eu me lembro de quando era bem pequena e via meus irmãos mais velhos ganhando de meus pais ou produzindo eles mesmos seus estilingues pra caçar passarinho. De vez em quando chegavam com sacolas cheias de pássaros mortos que iam logo para a frigideira. Não raro traziam também alguns outros animais que caçavam na mata. ERA TUDO NORMAL.

Eu me lembro de quando a gata da vizinha ganhava mais uma ninhada, e salvo alguns gatinhos muito sortudos, eram todos assassinados, jogados no rio ou contra o muro. ERA TUDO NORMAL.

Eu me lembro de quando nossos amigos, primos e irmãos mais velhos levavam surras homéricas, verdadeiros espancamentos por conta de motivos toscos. Ficavam com muitos hematomas e marcas horríveis. ERA TUDO NORMAL.

Eu lembro de ter ouvido meus irmãos mais velhos falarem do uso da palmatória e outros castigos institucionalizados utilizados nas escolas que frequentaram. ERA TUDO NORMAL.

Eu me lembro de tantas derrubadas de árvores e florestas inteiras sem que houvesse questionamento algum, de parte alguma. Nós, os “ecochatos”, ainda éramos crianças. ERA TUDO NORMAL.

Eu me lembro das chaminés produzindo muita fumaça negra, dando um tom dramático às nossas brincadeiras com as nuvens. Eram as inúmeras fábricas que se instalavam a cada dia em minha cidade e o que se ouvia era tão somente que o progresso estava chegando, que estava aumentando a oferta de emprego e nada mais. ERA TUDO NORMAL.

Eu me lembro de estudar na escola sobre o holocausto e as guerras mundiais. Não era nada desejável. Mas a visão daquela matança generalizada ERAM CENAS NORMAIS.

Eu me lembro de presenciar muitos casos de assédio sexual e assédio moral em empresas que trabalhei. ERA TUDO NORMAL.

Eu me lembro de ouvirmos um casal de vizinhos brigando e a mulher sendo espancada e ninguém fazia nada, pois "em briga de marido e mulher...". ERA TUDO NORMAL.

Eu me lembro de umas crianças em nossa rua que quase não podiam brincar com a gente e não frequentavam a escola porque tinham que cortar lenha e fazer outros trabalhos bem pesados na marcenaria dos tios. ERA TUDO NORMAL.

Pra fechar a idéia e não me alongar mais em minha análise, vejo tudo da seguinte forma:

Sabe aquele quartinho onde muitos de nós guardamos os entulhos da casa, aquela dispensa no lado de fora que quase não visitamos? Até a lâmpada está queimada, as coisas estão lá depositadas e o mofo e a poeira fazem a festa. Então, certo dia, resolvemos iluminar o lugar pra encontrar alguma coisa ou mesmo para por ordem em tudo aquilo, dispensando definitivamente o que não queremos mais. Assustamo-nos com a sujeira, o mofo e a poeira. Revoltamo-nos. Aquilo é inaceitável!! Como pode haver isso em nossa própria casa? E começa uma verdadeira revolução para, depois de muita luta, retomarmos a sensação de ordem, limpeza e dever cumprido.

A questão central é: antes de acendermos a luz, todo aquele cenário de horror já estava lá. Mas não nos dávamos conta disso. ERA TUDO NORMAL.

Assim vejo a fase atual de nosso planeta. Avançamos a olhos vistos. As luzes estão se acendendo, ou seja, estamos mais conscientes do quão sujo, mofado, empoeirado e desordenado está este mundo. Tanto há para se fazer! Aprendemos a discernir melhor os contrastes entre o feio e o belo. Mas, infelizmente, estamos correndo atrás do prejuízo. Até já encontramos algumas relíquias perdidas, mas a sujeira sempre esteve lá e só agora a vemos num tom preocupante.

Qual será nossa tendência doravante? Penso nas melhores hipóteses possíveis!

Desejamos redescobrir e criar o que há de melhor. Desejamos também “limpar” toda a barbárie e hipocrisia que ainda recheiam, principalmente, as páginas policiais e políticas dos nossos jornais.

Esta é a nossa casa e só é possível mudar este cenário com a luz acesa,

com bastante trabalho...

e com o espanto de que NADA DISSO É NORMAL!!

Inês Coelho
Enviado por Inês Coelho em 07/02/2012
Reeditado em 08/02/2012
Código do texto: T3485708
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