Discurso em Homenagem aos Jubilados

Ora direis, ouvir aposentados... Certo perdeste o senso...

Aposentar-se é, segundo o dicionário: hospedar-se em aposentos, abrigar-se (do quê teríamos que nos defender?), agasalhar-se (pelo inverno ou pela idade?), pôr de lado, inutilizar (essa é forte!). Etimologicamente a palavra é derivada de “pouso”. Pousamos.

Ao depender da nossa língua materna, estaríamos todos pousados em nossos aposentos, com pijamas de bolinhas e pantufas. Aposentar-se é, literalmente, no brasileiro: ir para os aposentos. Supõe-se que, ao retirar-se do mundo produtivo, o infeliz não tenha outra alternativa senão meter-se em um quarto escuro e úmido, deprimido, esperando a morte chegar. O senso comum brasileiro pensa em aposentados como anciãos desejosos de sua dose diária de Viagra. Chamam-nos também “inativos” e já nos imaginamos como estátuas de pedra, pousados em um pedestal empoeirado.

Já em francês, a palavra correspondente é “retraite” – do antigo francês, agora “retirer” e, em inglês, é “retire” ambas significando “retirar-se”, referindo-se à saída do mundo produtivo.

Uma saída difícil cheia de dúvidas – o que farei dos meus livros? quem vai dar continuidade aos meus projetos, às minhas idéias? – repleta de desamor e falta de carinho por conta das instituições, sem nenhuma preparação, a não ser a da bagagem pessoal de cada um. E alguns morrem por não estarem preparados. Ninguém tenta nos convencer a ficar, como gostaríamos. Essa atitude pode ser explicada, como procurarei fazer em seguida nesta fala.

Já a língua espanhola possui um termo interessante para a situação, chamam-nos “jubilados” – literalmente aqueles que estão em estado de júbilo, de alegria. Esse termo pode ser utilizado em nossa língua, mas damos preferência ao outro em nossa linguagem normal.

Aqui, um pequeno parêntese para um ato falho da academia brasileira: chamamos jubilados àqueles estudantes que são excluídos forçosamente do meio acadêmico. Admitimos que sair da academia é motivo de alegria... Mas isso é assunto para outro discurso.

Pensemos em conjunto: nossa civilização, seja ela ocidental ou oriental, arranjou uma estratégia curiosa de se estabelecer. É a seguinte: tranca-se o alimento, necessário a todos, que a Natureza nos dá espontanemente, sem esforço, e faz-se com que todos que queiram alimentar-se tenham que trabalhar para isso. Quem não trabalha não come e diminui a chance de sobrevivência. Todos são escravos desse meme – o gene cultural. Contrariar esse meme, parece loucura. Há os que contrariam e insistem em permanecer além da civilização: os sem teto e os aposentados, jubilados ou não. Desses temos pena por não produzirem. Os retirados ainda em idade produtiva parecem ainda mais loucos. Pessoas perguntam: “E agora, o que vais fazer?”. A resposta mais lógica seria: viver. Vou continuar vivendo. Aproveitar a vida, desfrutar a minha liberdade, seus escravos! Se a resposta for: “Vou abrir uma empresa” a outra pessoa suspira aliviada e concorda que essa é a melhor opção. Parece que a vida não vale nada. Gostariamos de criar um termo para essa situação, algo como “avitar-se” que significaria “ir ao encontro da vida” ao invés do pejorativo “aposentar-se”. Em não podendo criar palavras preferimos ser “jubilados”.

Vejamos por que: aos jubilados supostamente é dada, com muitas restrições por parte dos governos, a chance de sobreviver, alimentar-se, morar, vestir-se sem a necessidade de continuar trabalhando. Não é assim para todos, mas essa é a teoria. Teoricamente garante-se a nossa sobrevivência fora do mundo produtivo. Mas aí inventam-se taxas e sobretaxas, retiram-se penduricalhos sob forma de gratificação, inventa-se continuar pagando 11% para a Previdência Social, mesmo contra a lógica de que não vamos mais usufruir desse “investimento”. Votamos num presidente universitário, professor da Sorbonne e ele vira economista e castiga os educadores. Aí, para quebrar paradigmas, votamos em um operário. E ele também vira economista e se lixa para a Educação. De onde menos se espera, dali mesmo é que não sai nada, como dizia o finado Barão. Mas os jubilados são, antes de tudo, uns fortes e teimam em sobreviver.

O que nos assusta mesmo, antes das ameaças governamentais, na decisão da retirada, é a possibilidade de perder as amizades, os contatos humanos que aprendemos a fazer sobretudo no mundo produtivo. Mas, os verdadeiros amigos, os amigos do peito, os melhores amigos, não se afastam por conta dessa decisão. Eles continuam frequentando a nossa casa como se nada tivesse acontecido e, ainda, nos abastecem com as tais fofocas. Temos chance também de encontrar velhos amigos, afastados por conta de trabalhos diferentes. E temos chance de fazer novos amigos.

Assusta-nos, ainda, a possibilidade de perder poder, de influenciar, de sermos respeitados, de parar de fazer diferença na vida dos outros. Ledo engano. Nosso poder pessoal não é diminuído por conta daquela assinatura que fazemos lá na Divisão de Recursos Humanos. E o poder constituído e institucionalizado é apenas uma ilusão de quem não aprendeu a adquirir poder pessoal. Além do mais, abrem-se aos olhos dos retirados do mundo produtivo um enorme panorama de possibilidades de poder fazer diferença. O que pode acontecer e acontece é que, como as moscas do frasco que se retirou a tampa, podemos desaprender a voar para fora do frasco. Quebrar os paradigmas.

O que ganhamos mesmo e que temos até receio de contar aos que continuam na labuta diária é a sensação de infinita liberdade. Escolhemos nossos horários, nossas tarefas. Esse é o júbilo principal. Ficamos com pena deles e não dizemos nada para que possam continuar seus calvários. Mas eles sabem disso. Todos eles. Tanto é que inventaram a Previdência Social.

Ainda temos a sensação de perder diversão, que está associada à aprendizagem, principalmente para aquelas pessoas que se descuidaram de cultivar passatempos pessoais. No entanto, a diversão pode ser ampliada e aprefeiçoada. É a hora, afinal, de ouvir os discos colecionados, os livros armazenados, de entrar para a academia de ginástica ou de oferecer o trabalho voluntário para instituições sociais, dar aulas particulares ou ainda pode-se gravitar em torno da FURG, utilizando a brecha do aproveitamento do trabalho voluntário de aposentados, prevista na legislação interna – se o caso for incurável. É hora, ainda, de ter o tempo para longas conversas no avançado da noite, antes proibidas pelo horários a cumprir. É hora de ver filmes até mais tarde, como adolescentes irresponsáveis. É hora de navegar na Internet. È hora de aprender japonês. É hora de jardinagem, futebol ou tricô e tudo aquilo que antes era só um desejo. É hora de juntar trocados e viajar. É hora de amar.

Nós preferimos ser essa metamorfose ambulante e não manter aquela velha opinião formada sobre tudo. Aquilo que antes nos parecia vital e imprescindível, como a nossa paixão pela Educação, precisa ser revista pelo bem da nossa sobrevivência física e mental. Não que deixemos de acreditar que a Educação seja a primeira e fundamental solução para os problemas humanos, afinal fomos drogaditos por cerca de trinta anos. Seremos eternos educadores, mesmo estando em outra profissão. Mesmo que não tenhamos estado em salas de aula. Não que deixemos de gravitar em torno da FURG e mesmo longe, morando em outra cidade, não queiramos saber da fofocas e tramóias dos bastidores do poder universitário. Afinal ela foi a nossa casa por tanto e precioso tempo, pois nela passamos mais tempo acordados do que em nosso próprio lar. Mas temos o dever de descobrir-nos, de cuidarmos de nós, de usufruirmos a liberdade, de descobrirmos outras formas de diversão, de continuar aprendendo, enfim, de "não ter a vergonha de ser feliz".

Rio Grande 17-08-2004