Cultores da linguagem - discurso de formatura
Hoje faz 7 (sete) anos que minha amada mulher Cristina Passarelli Pimentel recebeu o grau de Licenciatura em Letras pela Universidade Federal do Pará, da qual efusiva e honrosamente fui seu paraninfo. Remexendo em nossos guardados encontrei o texto do discurso proferido por ela, escolhida oradora por seus colegas de turma. O título deste texto é aleatório, mas faz jus aos profissionais da área.
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Escolhida por meus colegas para esta protocolar incumbência, como oradora da turma, sinto-me mui honrada. E, por que não dizer envaidecida? Humildemente peço desculpas se minha modesta oratória não agradar. Mas, são palavras sinceras, do fundo do coração.
Alguns dos convidados aqui presentes provavelmente não sabem em que se habilitam os formados em Letras. De como desempenharão sua atividade profissional. De como colocarão em prática os conhecimentos aprendidos nos bancos acadêmicos. Como contribuirão com o próximo e com a Pátria?
Se em nosso lugar aqui estivessem colandos em Medicina, Engenharia e Direito, todos saberiam como eles iriam atuar. Mas, e em Letras?
É oportuno, portanto, fazer uma rápida abordagem de nossa atuação profissional, daquilo que doravante de fato e de direito iremos desenvolver.
Estaremos habilitados a lecionar a Língua Portuguesa que é o idioma falado em nosso País, herdado dos colonizadores, bem como a ensinar as literaturas brasileira e portuguesa.
Enquanto o médico se ocupa com a saúde do corpo e a preservação da vida de seu semelhante, nós iremos cultivar nosso idioma, curando o semelhante da alienação natural, contribuindo em nossa preservação como identidade de um povo, aplicando-lhe o soro do conhecimento lingüístico e literário.
Trabalharemos com a sintaxe, a morfologia, a semântica, a pragmática, a hermenêutica, a origem das palavras e sua interpretação, seja ela em prosa ou verso, assim como seus cultores, poetas e escritores, seus estilos, gêneros e épocas.
Iremos manter vivos, os autores do passado e do presente, evidentemente que no sentido metafórico.
Através de nós saberão nossos alunos a distinção entre as palavras homônimas, homófonas, parônimas etc.
Diremos por que Bilac chamou nossa língua de “Flor do Lácio, inculta e bela”.
Difundiremos os versos clássicos dos grandes ícones da Língua Portuguesa, entre os quais, Camões, que escreveu que “O amor é fogo que arde sem se ver/ é ferida que dói e não se sente ...”. E Fernando Pessoa, de que “... tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
Estes últimos versos me trazem à lembrança a cena de algumas colegas alojadas em modesto e acanhado quarto nesta cidade para mais um período escolar, no sacrifício do aluno pobre que mora em outro município. E lá estavam estes versos esculpidos em uma caixa de papelão que servia de cômoda. Lembrei que o mesmo poeta escrevera também que “Navegar é preciso. Viver não é preciso”.
Prosseguindo em nossa missão, iremos abrir os olhos de nossos alunos para o Barroco de Gregório de Matos Guerra, o Arcadismo de Tomás Antonio Gonzaga, com sua eterna musa Marília, o Romantismo de Álvares de Azevedo, o Realismo do imortal Machado de Assis, o Simbolismo de Cruz e Souza; do Pré-modernismo até o estágio atual, passando por Euclides da Cunha, Lima Barreto, Monteiro Lobato, Mario de Andrade, Vinicius de Morais, Raquel de Queiroz, Érico, Amado, Clarice e tantos outros, chegando aos versos de Cecília: “Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa, não sou alegre nem sou triste, sou poeta”.
Enquanto o engenheiro e o arquiteto constroem prédios, nos estaremos trabalhando na fundação e nos alicerces da cultura necessária a nossos patrícios.
Enquanto o advogado irá defender seu cliente ante o direito espoliado, nos iremos defender o saber de investidas malsãs, libertando nosso semelhante das amarras e trevas da ignorância.
E assim por diante, sempre tendo algo em comum com as demais profissões.
Seremos lavradores, arando a terra humana, semeando as palavras para que brotem frutos de conhecimento, dotando-a de bens que irão acompanhá-los por toda a vida.
Portanto, como nas Escrituras, coloquemos a mão ao arado sem olhar para trás, para sermos dignos de nosso mister.
O homem pode perder todos os seus bens materiais, seja qual for o tamanho de suas riquezas, mas o conhecimento é um bem que ninguém, nenhum tirano ou ditador poderá lhe arrebatar.
Sejamos alquimistas na reunião dessas profissões, não em busca da pedra filosofal, mas transformando, sem nenhuma gota de arrogância ou pretensão, com perseverança, dedicação e empenho, pedras brutas em brilhantes.
Oportuno se faz uma retrospectiva de nossa inesquecível caminhada nos bancos acadêmicos até esta memorável data que já começa a entrar no rol da saudade.
Parece que foi ontem, fazendo já alguns semestres, cada um de nós se associava a mais 49 novos colegas, a maioria desconhecidos, vindos dos mais diversos municípios deste Estado.
Eufóricos, cheios de anseios, curiosos do que nos ia ser ministrado, cada qual como uma dose diferente de expectativa e a vontade comum de vencer os obstáculos que surgissem.
Não demorou muito para que entendêssemos que encontraríamos, parafraseando Drummond, “muitas pedras no meio do caminho porque no meio do caminho havia muitas pedras”.
Coisas diferentes e estranhas surgiam diante de nós como a apresentação dos eixos sintagmáticos e paradigmáticos. A explanação sobre a primeira e a segunda articulação da língua. A gramática gerativa-transformacional de Noam Chomisk. A pseudoconcreticidade como a unidade da forma fenomênica e da coisa em si. A natureza arbitrária e convencional do signo lingüístico. Vigotsky e a zona de desenvolvimento proximal ...
Esses foram alguns assuntos estranhos que nos fascinaram, deixando-nos extasiados e perplexos frente ao maravilhoso mundo da linguagem.
Seminários, provas, trabalhos, trabalhos, provas, seminários ... era tudo uma correria tão intensa que muitas vezes, motivados por nossa fragilidade humana, tivemos a intenção de parar e desistir, ou até mesmo de evadir para a tão sonhada Pasárgada de Manuel Bandeira.
Ainda bem que não nos deixamos seduzir pelo canto das sereias e conseguimos atravessar o mar e ancorar no porto de Ítaca que é este dia.
Faço uma rápida digressão para lembrar fatos pitorescos da turma de Letras/97 como a colega Vera que em suas exposições se desmanchava em suor ensopando suas roupas.
A Enilde que de certa feita deu nota Insuficiente para todos os colegas, exceto para ela e outro aluno, avaliados com Excelente.
A Adalgiza e sua performance surpreendente e elogiável na encenação de uma peça teatral.
E o nome mais comentado: “Matoso Câmara”.
O momento marcante: a despedida do professor Sérgio Alves que dá o nome a esta turma.
O professor Edson Ferreira que após passar um longo e tenebroso período torturando e implicando conosco despediu-se com um beijo soprado da palma da mão.
A queixa secundarista, para não dizer “amamãezada”, do João na secretaria porque penduraram sua pasta na luminária. E o mesmo João apelidado carinhosamente de “aluno maniçoba” e que repetia sempre a palavra “perdura”.
O dia mais esperado da semana: a sexta-feira, quando todos retornavam para seus lares.
O pito levado pela Jose em plena aula de Metodologia do Trabalho Científico quando retocava o batom.
A voz de FM do Cláudio.
As interpretações da Aline nos corredores recitando os “Versos Íntimos”, de Augusto dos Anjos.
Jonas, sempre citando “Macambira” em suas incursões lingüísticas.
As dramatizações de Valéria.
As paródias de Raimundinho, o nosso Gregório de Matos, popular “Boca do Inferno”.
O Cosme arrastando suas sandálias parecendo o jovem rebelde dos anos 60 e 70.
E nessa viagem nos tornamos uma grande família na qual reciprocamente nos amparávamos com palavras de amor, incentivo e solicitude, para que pudéssemos chegar ao objetivo final que chegamos. Graças a Deus!
E ao longo desses anos muitos tiveram suas vidas completamente modificadas. Uns casaram, outros se tornaram pais, mães e outros até se foram para longe de nós, mas permanecerão guardados indelevelmente no Museu da Terra do Coração.
Aprendemos aqui, com nossos amados e inesquecíveis mestres (até mesmo com aqueles que muitas vezes nos fizeram chorar) que “sempre” e “nunca” são tempos que inexistem, por isso é sempre tempo de aprender e nunca é tempo de desistir.
Graças a eles, que fizeram das noites salas iluminadas, que tornaram a luz da dúvida uma estrela remota, que dos dias fizeram planos de aulas e das aulas, planos para os nossos dias. Eles que fizeram do conhecer a sua cadeira e na divisa entre o evidente e o elementar, à beira de um abismo cujo valor é o saber e cujo horizonte transcende o céu do pensar, eles sentaram-se para apreciar nosso entardecer. E entardecíamos ... Entardecíamos com o último dia do resto de nossas vidas.
Mas antes que sumíssemos nas sombras da sociedade, nos voltamos, e sorrindo, acenamos então um último adeus de agradecimento e saudade.
E agora que estamos partindo, caros colegas, que a distância não disperse as nossas idéias, mas as defina, expandindo-as em prol da transformação social.
O mais belo de tudo é que uma parte de nós fica e outra vai, não nos dividindo, mas nos reproduzindo.
Trocamos idéias e assim propusemo-nos a edificar um mundo melhor, uma educação mais coerente.
E ao sairmos daqui, guardando as peculiaridades de cada um, lembrar-nos-emos com carinho de tudo o que passamos juntos, de todos os problemas que enfrentamos, de todas as experiências que vivemos.
Devo lembrá-los que não encerraremos aqui nosso aprendizado. Trata-se apenas de uma etapa vencida.
Alguns alçarão vôos mais altos, se especializando, se mestrando, se doutorando. Outros, pelas circunstâncias, ficarão apenas neste curso de graduação.
E para os que não puderem ou não quiserem prosseguir usando este curso como instrumento, me invisto da prosopopéia dos versos de Toquinho para como o caderno e o livro pedir: “não me esqueçam num canto qualquer”. Sempre buscando mais, como nos versos do saudoso Gonzaguinha, que mostrava “a beleza de ser um eterno aprendiz”.
Aproveito o ensejo, para, em nome dos colegas, registrar o nosso perene agradecimento não somente aos professores, mas aos servidores do campus, aos nossos pais, cônjuges, filhos, irmãos, amigos e a todos que de alguma forma contribuíram para esta vitória.
Meus queridíssimos colegas, na hora da despedida, não diremos um ADEUS! Somente um ATÉ BREVE! E se por acaso, lágrimas deslizarem, serão apenas de felicidade e da saudade que começa a invadir a cada um de nós.
Muito obrigada.
Cristina Passarelli Pimentel
Castanhal-PA, 30 de maio de 2002.