507:uma crônica capixaba num transcol nao muito lotado

Vamos escrever um pouco, não! Um pouco não, prefiro escrever bastante.

Se isso será uma crônica ou um conto o problema não é meu. Hoje até aprendi o atalho no computador para fazer o travessão e eu acho que isto pode mudar minha vida, vai saber...

Vou contar sobre uma noite, uma noite qualquer. O importante é entender que já era noite quando eu sai da praia da costa e tive uma grande idéia: voltar pra minha casa antes que eu ficasse tarde demais, mas isto não me deixou preocupado.

Foi quando eu cheguei ao terminal rodoviário que a minha preocupação realmente começou: já se passava das nove horas da noite, minha cabeça começava a dar sinais de cansaço, meu celular acabara a bateria; então como eu sabia que horas eram? Vai dormir e para de me perguntar seu curioso, o que acontece é que eu sabia e pronto. Minha primeira opção de linha de ônibus, a 501, mas eu olhei embaixo da placa dele e o ultimo saíra às 20 horas ou mais, já era... Segunda opção era o expresso 520, mas o ultimo tinha passado às 18 horas, mas que coisa, que fosse tomar no fusca esta linha.

Ainda bem que sempre temos um plano B, no meu caso o plano 507. O ponto do dito cujo estava vazio, das duas uma: ou ele não passava mais naquela noite, ou havia acabado de passar. Nenhuma das duas me alegrava, porém a segunda era menos sinistra para mim pois ainda me dava uma chance de ir embora para casa.

É. Lá estava eu em vila Velha numa sexta-feira de janeiro à noite e oriundo da Praia da Costa, eu sou muito comum mesmo, e gosto de ser assim.

Vindo de um lugar distante algo atingiu meus pensamentos: a saudade de meu pai e do carro dele que me levava a qualquer lugar, uma saudade boa e parado ali naquele ponto de ônibus deu tempo de me bater diversas lembranças da minha família que lá não estava comigo. Inclusive a lembrança de minha professora me mandando eu escrever algo moderno. Surgiu então o problema de como escrever algo moderno se eu acho a minha língua mãe tão antiga, e não venha me pedir para escrever em inglês, eu apenas comecei a fazer o curso. Até fico admirado com meu querido pai, agora ele não está comigo e fico triste com isso, mas graças a Deus ele ainda está nesta terra: em cima dela, não embaixo como outros que conheci; não que “conhecia”, pois isto indicaria que ainda existe a possibilidade de eles andarem aqui no nosso chão e esta possibilidade me assustaria muito mesmo. E voltando a meu adorável pai, ele é um lavrador nascido, criado e crescido no mato e ainda hoje ouço coisas que ele fala que seria capaz de apostar que é palavra de meio de mato, entretanto quando eu pego um dicionário, dicionário de português e pelo amor de deus me traz um Houaiss ou um Aurélio, chega de dicionário de bolso que não tem uma descrição que presta.

As palavras que ele fala estão no dicionário e ainda me parecem bem cultas pelo jeito que ele utiliza, eu jovem é que realmente sou um porco lingüístico.

Demorou um bocado, mas o bendito 507 chegou. Passou um pouco do medo de ficar preso no terminal de vila velha, só falo isso porque eu mal sabia me encontrar andando de Transcol naquela época. Entrei vagarosamente no ônibus, quase fui atropelado pelas pessoas que estavam atrás na fila. Sentei bem na frente, e na minha frente duas mulheres uma morena linda e vestindo uma camisa com uma estampa ordinária e a esquerda dela e minha direita uma loira usando um vestido, eu acho que era vestido não entendo bem desses nomes de roupas de mulheres, a única combinação que eu sei que dá certo para elas é o fio dental e ainda por cima não fica bem em todas.

Cantadas especiais para mulheres especiais. Nenhuma das duas me parecia especiais. A loira me olhava desconfiada, talvez me achando com cara de tarado psicopata, venhamos e convenhamos que para alguém atacá-la teria que ser muito psicopata mesmo, só com problema de cérebro para alguém tentar assediá-la, se fosse para eu olhar alguém eu olharia a morena que tinha muitos mais predicados.

Lá pelas tantas da viagem, ainda em Vila Velha o ônibus para num ponto e entra um cara todo engravatado com terno preto e tudo. Questão valendo um milhão (milho grandão, tipo aquele transgênico que você comprou daquele seu amigo cientista que trabalhava na Monsanto) ou mais: um homem engravatado no Brasil, excluindo os homens noivos que hoje são uma bruta raridade, ou ele é uma autoridade ou então é pastor (sem preconceito nenhum ao grupo que é formado de pessoas honestas e que espalham a apalavra de Deus pela terra). E como não era período de campanha eleitoral não podia ser político. Autoridade nunca anda de ônibus. Ele devia ser um pastor.

O importante nesta historia não era o pastor, mas sim quem eu acho que fosse a filha dele. Um vestido preto impecável, um arco na cabeça, um cabelo preto encantador, que boca, que rosto, que tentação. Ela ficou em pé bem ao meu lado. Como eu olharia para ela sem parecer que estava secando ela deliberadamente, ai que desespero. O que eu faço? Poderia levantar e dar o lugar para ela, tentar puxar assunto. Para quê? Depois ela iria embora, eu nunca mais veria o rosto dela e ainda teria feito toda a minha viagem em pé. O ônibus começou a subir a terceira ponte.

Ela em pé a minha direita, não vou olhar para ela, olhei então para a esquerda. Vi o reflexo dela na janela do ônibus, da janela eu enxergava também o convento da penha com toda sua beleza e bom gosto.

O que você diria se visse alguém olhando para o lado em todo o trajeto pela terceira ponte? Eu não diria nada, não sou intrometido. Ela ajeitava o cabelo, como que se estivesse se exibindo para mim, seria aquilo uma deixa, quem sabe? Mas temos que pensar na física da situação: se eu podia olhar para ela, então ela conseqüentemente também podia ver minha pessoa com os olhos presos na imagem dela. Um momento precioso onde eu não me importava com meu rumo de volta para casa, só o rosto daquela morena me importava.

Como eu queria que o ônibus sofresse um acidente, não precisava ser nada grave, apenas uma freada brusca serviria: uma freada onde ela cairia em meus braços, nos braços de seu salva-vidas de plantão. Nada disso ocorreu. Eu não parava de admirar, sua estatura mediana me chamava à atenção, qualquer detalhe dela me prendia a atenção naquele momento. Ela merecia uma sonata apaixonada, não apenas uma, um livro só com versos destinados a ela. Ai se ela me deixasse compor...

Às vezes ela esbarrava em mim, quanta superstição a minha, achar que aquele monumento à beleza iria se interessar em mim, ainda mais sentado num Transcol... Ela saltou do ônibus e se foi, só sei que ela estudava na UFES e não me perguntem o quê? Eles não falaram nada sobre o curso, quem sabe não encontro ela outra vez e faço...

Não faço a menor idéia do que fazer.

Não fiz nada naquela noite, por que iria fazer quando a encontrasse de novo. Paixões deste tipo são transitórias, apenas lapsos passageiros de interesse que temos dentro de nós. Inúteis tolos de espírito que pretendemos algo sem a coragem necessária para obter o prêmio máximo da cobiça.

Chegou a minha vez de saltar do veiculo, desci dele e fui embora feliz por ter chegado a minha casa e onde ia escrever o que estou acabando de escrever agora.

E como eu queria ser mais, acreditar que o ser humano pode ser capaz de tentar nunca errar na esperança de algum dia acertar em suas escolhas.