Tizil, uma vida por um fio

Certa vez em uma esquina qualquer, de uma grande cidade, onde não existia verdade e no convívio entre os seres, imperava a falsidade, a maldade e a mediocridade.

Uma metrópole onde a iniqüidade montava tenda ao redor, a vaidade ao derredor e por suas veias, teias, era cheia de outdoor. Seus lugares úmidos, cinzentos, gosmentos, grudentos, causavam horror a qualquer sacristão, cristão.

Perdida no meio da imensidão do planeta, cheia de gametas e plaquetas. Em um local muito longínquo e de difícil localização, da qual o tempo não nos deixou explicação.

Para ela não havia solução, nem negociação, sequer mediação.

Ali e em noite de luar, uma criança nasceu. Ele é teu, ele é meu, ele é seu.

Sua mãe era prostituta e se encontrava em um bordel. Mesmo grávida, não deixava de se fazer presente todas as noites no lugar. Na verdade morava lá. Este era seu mundo. Seus parentes, sua família, seus queridos entes.

Personagens esquecidos de uma crônica urbana, suburbana, histórias de caravanas. Criaturas vagueando ao Deus dará sobre a terra, que um dia já foi bela.

Não passavam de sombras de pessoas. Aqueles tipos sombrios que preenchem as páginas rabiscadas por Poe e Kafka, qualquer andante, em nada pareciam com um herói de Dante.

Bêbados, marinheiros, biscateiros, larápios e vagabundos, personagens moribundos. Gangster em processo de falência, vendo à morte em eminência. Padres quebrando a abstinência, até pois, é da essência, tenha pois, clemência.

Seres biológicos, genéticos, antológicos, bucólicos, estabanados, desafinados.

Estes eram seus clientes, nada tinham de excelente, isto era evidente, seja descente.

Naquela noite, à noite do parto, quando o relógio tocava um quarto, ela bebeu, se embriagou até não dar mais conta de si, quase nunca caia em si. T

erminou por desmaiar em um monte de lixo que ficava na esquina dos fundos do bordel, perto da loja do Teruel, parente do Emanuel.

E ali, envolto no lixo a criança nasceu. Cercadas de odores desprezíveis, envolto em restos, sobras e porcarias, cercada pela patifaria, quanta quinquilharia. Aquilo que a sociedade descarta, menospreza e disfarçadamente dispensa de suas casas.

É uma pena que não tenham asas e não costumem comer uva passas.

Alguns, os põem em sacolas plásticas, primam pela educação, boas maneiras, ser cidadão. Outros o fazem, nos quintais de casas, pelas ruas, becos e esquinas.

E, foi numa destas que a criança nasceu, se perdeu. Quase que morreu mas, diante do mundo vil, ela resistiu. Nasceu febril, seu apelido era Tizil - o hostil.

Fica a criança vai a mãe.

No momento do parto recebeu o golpe mortal.

Os céus, frontalmente ofendido pelos humanos, desumanos, chocado com o acontecido, sucedido, lhe negou o continuar existindo, diminuindo.

Coitada da mãe. Como poderia ser diferente em um mundo tão demente, não se vê muitos clementes, somente descrentes.

Cresceu, cresceu, tornou-se menino, adolescente, jovem, cercado das piores companhias e tendo por exemplo àquilo que de mais execrável existe.

Era de tenra idade quando foi, pelas prostitutas, as suas amigas confidentes, iniciado nos prazeres do amor.

Tudo o que elas não encontravam em seus clientes, indecentes, era buscado em Tizil.

Carência afetiva, comunicativa, o ser tratada como pessoa humana e não objeto de prazer, somente pra ter, isto buscavam nele. Ensinavam a ele. Explicitaram a ele. Imploravam a ele.

Sabia ele, e somente ele, saciar os desejos ocultos de uma mulher.

Aquilo que as mulheres tanto anseiam ver revelado, despertado, nelas, pelos maridos, destemidos. Não mentido, coagido, fingido.

Mas, os homens por vergonha de ofertar e buscar prazer com suas esposas, o fazem fora de casa. Deixam suas mulheres frustradas em casa, para buscarem insatisfação pessoal fora do lar. Cada qual com o seu par.

Sozinhas no lar, Tizil ia lhes visitar e dava o que falar.

Aos seis anos manuseava um vinte e dois, aos oito um trinta e oito e aos doze uma cano doze.

Aprendeu a roubar, surrupiar, assaltar velhinhos pobres e indefesos. Esses que andam a vagar sozinho sem um lar, cansados do ar, não querem mais respirar.

Esquecidos pela família. E os governos não os enxergam, os menosprezam, os desprezam, já não servem mais, para nunca mais.

Contrabandeava mercadorias, fazia correria, muita canalhice, fanfarrice, bebedice. Não tinha medo da lei, não respeitava uma farda, nem ao menos, a guarda-armada.

Aos dezoito levou doze facadas, afiadas. Não morreu, mas sofreu, não deixou de ser ateu.

Não era de estranhar que se enveredasse pelo mundo do mal, tal qual. Era o que sabia fazer, se entreter.

Não sabia quem era o seu pai. Não sabia quem era, de onde era, pra que era, se é que era. Sabia que estava ali, como um forasteiro em terra estranha. Recheadas de estranhos, seres mundanos, profanos, humanos.

Tiros, facadas, brigas, intrigas, futricas isto eram rotina no bordel, que em nada parecia com o céu.

Acabou se acostumando achava isto natural, casual, atual. Não demorou, matou a cafetina do recinto e tomou o seu lugar. O fez, também porque lhe convinha mas acima de tudo, pela mãe, que por aquela sempre fora desprezada.

Apenas começou, não queria mais parar, queria se perpetuar. Passou a ser respeitado, não conversava mais com qualquer coitado e mandava matar viado, pois atrapalhavam seus negócios, não era dado ao ócio e curtia ópio.

O traficante do lugar foi encontrado morto, ele e suas três mulheres. Todos nus dentro de uma banheira de motel, não era lua de fel, foi um ato cruel.

Cafetão e traficante e daí por diante.

Mais um comediante, farsante. Virou chefão, o grande Paizão, mas sem muita compaixão, dono da situação. Se não lhe fizessem favor, logo, guardava rancor. Despreza o clamor do coitado, que vinha a se tornar finado.

Gerava muita dor, não tinha pudor. Resolveu que queria ser chamado de doutor.

- Ora, por favor.

- Eu quero é respeito sim senhor. Foi estudar, se atualizar, se capacitar, se profissionalizar.

Ou melhor. Invadiu a escola do bairro e apontou um "berro" para a cabeça do diretor, exigindo-lhe um diploma de segundo grau. Gritou aos quatro ventos:

- Suas pestanas e teu corpo às ratazanas ou o meu diploma!

- Mas é claro, será um honra. Choramingou o homem, quanta desonra. Pobre ser. Sucumbido pela lei da força, quase na forca. O diploma ficou pronto em minutos, não foi dia de luto.

No outro dia se matriculou em direito, para ver se aprendia a fazer direito. Teve muito peito e até que tinha jeito.

A escola era de burguês, agora chegou a sua vez. Patricinhas, mauricinhos, playboyzinhos, filhinhos de papai, mineiros uai.?

Um o pai era médico, a outra a mãe era deputada, aquele lá adiante, advogado. Tinha uma menina que o pai era embaixador, conhecia o mundo todo, já havia rodado o globo. Fazendeiros, herdeiros de fortunas, grande patrimônios.

Enfim, encontrou ali no meio da granfinagem, os seus melhores clientes, onde conheceu muita gente, aprendeu línguas diferentes, muitos verbetes, "caguetes".

Começou a virar peixe grande e pegou uma variante, que ficava logo adiante. Não foi muito distante, logo, logo na frente, deu de frente.

O professor de matemática da escola estava sendo grampeado, mapeado, focalizado. Sua esposa, consciente de sua infidelidade, contratou um detetive. Este não respeitava a lei e grampeou o telefone.

Para piorar, os céus, já não muito contente com o Tizil por que era muito hostil, deram sua vida por um fio. Resolveram pois dar cabo dele, pobre coitado.

O professor era cliente do Tizil, cliente número um. Comprava cocaína para si e para as alunas. Era dado a bacanal, achava que era o tal.

O detetive vivia a escutar as conversas em seu carro, uma perua Kombi. A cada dia que passava os volumes de fitas aumentavam, quadruplicavam, quantificavam.

No último dia do seu trabalho, na última hora do dia, na penumbra do dia, um guarda de trânsito, que perambulava pelo local a falar em uma linguagem coloquial, viu a Kombi. Resolveu fazer gracinha e ganhou o dia. Deu até uma festa depois em sua chacrinha lá perto da lapinha.

O guarda deparou com aquelas fitas todas. Entregou-as a polícia, o Tizil entrou numa fria. Foi a maior baixaria.

Tocaia! Tomara que caia, não fuja da raia.

Surpreendido logo ao chegar à faculdade em sua mercedez esbanjando vaidade, felicidade.

- Pare Tizil, não seja doentio. Ouviu.

Ele saiu correndo e foi para a escola. Fechou a porta da entrada e sacou de seus revólveres, uma bereta e um magnum, coisa de genta fina, granfina.

- Se entrarem eu mato todos. Começou feito louco a apregoar pelas janelas. Muitos, acenderam suas velas nas capelas.

Parecendo uma procissão de árvores de natal, dezenas, centenas, uma variedade imensa de viaturas de polícia. De todos os tipos, com vários tipos de uniforme, cercaram o local, o mundo é colossal, global.

Helicópteros, dos tiras e da TV e com câmeras de TV, garantiam a todos os melhores ângulos.

A novela parou. O boletim do jornal entrou urgentemente.

- Tizil o Hostil toma faculdade nobre do centro. Todas as cenas, ao vivo, cada detalhe.

Uma equipe de plantão estrategicamente localizada do outro lado da cidade, para eventualidades, foi acionada, chamada. Saiu em disparada.

Em poucos minutos chegaram ao bordel, já havia duas equipes de TV lá, não foram os primeiros, os melhores. Os piores serão descartados, são fracassados, passos descompassados.

Enquanto que o Tizil coitado, via-se todo acuado. E, meio que desesperado saiu atrapalhado, todo abestalhado, bem abobalhado. A correr, a atirar, a gritar, a morrer, a feder.

Pode crê, se tornou o alvo. Não estava a salvo.

Como que um condenado ao pelotão de fuzilamento, Tizil o Hostil se viu, que tormento, não ouve alento, quanto sofrimento.

Quanta bala, de chumbo, de prata, de lata. Caiu ao chão. Escafedeu-se.

A novela voltou na TV. Neste momento o galã, tascava o maior beijo de língua na mocinha. Suas mãos serpenteavam por entre as coxas delas. Não era clone, era silicone.

Closes, beijos. Closes, cheiros. Closes, suor. Closes clone. Closes silicone.

Closes, calor. Closes a vapor. Sem nenhum pudor. Que horror, causa-nos torpor.

Entra o comercial, enquanto que no espaço sideral, cometas a vagar, planetas a voar.

Tudo tende a suplantar.

O que andas a plantar?

Jeferson Bortolo

jeffbortolo@estadao.com.br

Jef Bortolo
Enviado por Jef Bortolo em 09/05/2008
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