Às terças e às sextas
Às terças e às sextas
Jorge Amado dizia que a História não é feita pelos seus
narradores mas antes pelos que são varridos por ela. Graças a um erro de sinalização, hoje almocei com eles, e não estou me referindo aos narradores.
A Igreja Imaculada Conceição, próxima à avenida Paulista, promove duas vezes por semana o “almoço solidário”. Esse evento não acontece exatamente nas dependências da paróquia, mas num prédio ao lado, na rua Cincinato Braga, onde até domingo, havia uma faixa enorme que anunciava não só uma escola de música como demonstrava interesse por professores. Nunca alfabetizei ninguém musicalmente, nem tenho essa competência, mas no bolso do colete há um curso prontinho de harmonia e improvisação, para quem já toca alguma coisa mas não sabe direito o que fazer.
Acho que, há três semanas vinha namorando aquela faixa e pensando na possibilidade de por ali exibir meus predicados e ganhar alguns trocados, trocados que se nominalmente reúnam pouco significado, ganham outra expressão quando se materializam através daquilo que se gosta.
Hoje foi o dia de checar. Existem 2 entradas no número 540 da Cincinato Braga, uma lateral, e outra, que me parecia a entrada da escola, cuja porta estava fechada. 10 e 30 da manhã. Frio. Na entrada um segurança vestido de preto com um tanto assim de cartões amarelados e plastificados na mão. Eu olhava para a porta fechada, ruminava um dedal, tentava olhar de viés pela porta que ele tão bem guardava, até que, em dado momento, na velocidade que essas coisas acontecem, ele indaga: quer uma senha? – já me estendendo o cartão plastificado, maior talvez do que um maço de cigarros. Pensei, “se é para o bem da nação...”, e de cartão na mão, entrei. E ele fechou o portão.
A descrição inicial, é a de um pátio, com uma árvore no meio, e duas escadas. Na hora, já haviam umas 30 pessoas ali. Demoro um pouco para fazer o entendimento das coisas, mas tão certo quanto 4 é o resultado de dois mais dois, desde criança presto muito mais atenção nos detalhes do que no todo. E o detalhe da vez era uma placa, pregada na árvore, com os dizeres: regras de convívio social, não trazer bebida alcoólica, não brigar, não falar palavrões...Pouco a pouco, olhando em torno, o 4 me apareceu na mente explicando que eu não estava numa escola de música. Mas e a faixa? Porque com os mesmos olhos que li a curiosa placa procurei a sinalização de outrora, só podendo ser de outrora porque definitivamente era o mesmo prédio. Fui até o portão, que estava trancado, e pela fresta vi o segurança na rua, com as senhas na mão, e, antes de mais nada, perguntei sobre a faixa da escola. Que escola? – indagou ele. Expliquei que até pouco tempo, domingo, para ser exato, havia ali na parede uma faixa colorida, enorme...- Ah, fui eu que arranquei, ontem,,, hã? Ah, a escola não existe mais, desde dezembro...
Primeira informação definitivamente assimilada. A segunda viria no transcorrer. No alto de uma das escadas, porque a outra não serve pra nada, havia outro segurança, com nenhum senso de humor para com os que ali estavam, e no sopé da escada um cordão listrado amarelo e preto, também comumente conhecido como cordão de isolamento. Bom, que estamos fazendo aqui? Porque não havia nenhuma outra sinalização ali explicando coisa alguma, a não ser a placa do convívio social. Que era para você não ficar de porre, não xingar seu semelhante, não dar baixaria, três coisas que, confesso, me passaram pela cabeça, sobretudo quando fui procurar o “meu” segurança e ele havia sumido e o portão trancado. Para todo o sempre...Consultei o relógio: 10 para às 11. Vejamos com quem puxar conversa e solucionar o enigma. O sujeito do meu lado carregava um saco de lixo preto e conversava de modo exacerbado com outro, que também tinha um saco, desses de 100 litros. Ambos descalços. Como ele estava muito entretido no assunto, apenas gesticulou a direção – e a escada que supus sem serventia, era na verdade uma rampa para deficientes, que efetuava uma ilógica curvatura até chegar no mesmo piso onde se encontrava o irascível segurança 2. Ao percorrê-la obtinha-se outro panorama. E as 30 pessoas se transformam em 60 sem cerimônia. Do outro lado do pátio uma espécie de marquise abrigava as outras 30, umas encostadas nas outras, boa parte deitada, enrolada em cobertas, alguns carrinhos de carroceiro, crianças, está garoando, o panorama devagarinho vai descortinando o que não se quer ver nem na TV e tampouco conviver, um senhora recém saída do cabeleireiro mas cujos sapatos contam historias de muitas andanças, dois rapazes cheios de pulseiras mais um display repleto delas, um idoso aqui, outra idosa ali, ambos aparentam ainda ter uma moradia, um sujeito ali atrás que não vendeu todas as roupas no brechó exibe sua origem, muito embora pelo olhar, pelo arquear de ombros, vê-se que o tombo foi feio, no mais, sacos de lixo preto não faltavam, todos tinham dono e os donos os seguravam com afinco, e num instante todo mundo partindo numa única direção, de senha na mão, os cotovelos falam no mesmo timbre que as interjeições de quem quer chegar primeiro, pois o segurança numero 2 liberou “as cancelas”, só há um fluxo a ser seguido, e uma vez liberto da senha você está num refeitório. Então é isso...Mas as coisas continuam acontecendo na implacável velocidade que eventos dessa natureza suscitam, e uma moça em andrajos apareceu do nada para ocupar o último lugar vago, estava ligeiramente embriagada e queria por todo pano lavar as mãos. À minha esquerda, a senhora que foi ao cabeleireiro guardou um dos pães dentro da bolsa e me segredou – toda terça e toda sexta, eu almoço aqui. Pra economizar, entende? Fiz que sim com a cabeça. Um dos homens do saco preto tirou de dentro do mesmo uma garrafa pet vazia e disse ao companheiro que iria enchê-la. Também guardou um dos pães oferecidos dentro do saco.
Aqueles e aquelas que arregaçaram as mangas para que esse evento tivesse êxito apareceram com touquinha na cabeça e avental, acenaram a todos com a simpatia e o sorriso dos que devotam seu tempo à necessidade dos outros, e antes de servirem convidaram-nos para a oração. Um pai nosso e uma ave-maria, em voz alta, unindo corações e mentes em duas línguas. A língua portuguesa e a língua da fome.
À tardinha, junto com o incessante garoar, a citação do Jorge Amado ganhou um acréscimo: varridos somos todos, apenasmente uns pela porta de trás, outros pela da frente. E depois de muito refletir, conclui: Ponto alto do dia. Sem falar que a comida estava ótima.