Quer-me Zé
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Quermezé já era homem feito, pai de filhas – uma já mocinha até. O homem não bebia nem fumava, mas como não existe nenhuma criatura humana perfeita nesse mundão medonho de meu bondoso Deus, o danado era viciado em vestibular.
Época de inscrição era pra ele o mesmo que preparativo de festa. O cabra lia os editais, comprava os jornais pra confirmar datas que já lera – era a solene, íntima, intensa e silenciosa celebração da perspectiva de um novo pleito, de uma nova eleição individualizada na qual consistem todos os concursos... E assim ele seguia, ritualmente, todos os passos até o dia da prova.
Foto datada – hoje em dia isso deixou de ser condição necessária e suficiente para se efetivar a inscrição, mas, mesmo assim, Quermezé datava cada uma das fotos como forma de cotejar a evolução que o tempo nele perpetrava, como pessoa e como mutação estética de imperfeito ser vivente. Ele sentia as irrefragáveis marcas operadas pelo tempo, mesmo sem que a primeira mecha de cabelo branco se debruçasse sobre ele, ainda.
Inscrição à mão. Prova e aprovação.
Pior mesmo era que o mardito, em muitos dos vestibulares, fazia apenas a matrícula, tirando a vaga de quem realmente queria cursar. Carecia de mais perseverança, mais caridade e mais clareza das idéias.
Novamente Quermezé sairia nos jornais, entrando para os anais duma Instituição de Ensino Superior. Dessa vez: Curso de Direito.
E a placa de formatura que nunca saía? Será que dessa vez o bicho ia?
Ih! Se a gente fosse contar quantos cursos Quermezé já deixara a ver navios, a tabuada findaria, principalmente a que se conta nos dedos, às escondidas, quando diante de perguntas simples que os amigos, as namoradas ou os pais delas nos obrigam a fazer, somando dois números entre zero e cem, coisa simples mesmo. Eita que já passei sufoco pra somar, por exemplo, ‘37 + 65’ – esse tal de ‘vai um’ é cruel demais da conta! E pra subtrair então. Nunca sei de onde pegar emprestado depois do tal de ‘sete pra quinze’. Esse negócio de números dava canseira e Quermezé agora queria mesmo era ler muito. O cabra parecia ter tomado jeito e gosto. Firmara mesmo o propósito de ser doutor das Leis e andava lendo tanto que vivia cheio duns tal de ‘latim’ e duns ‘francês’.
Vixe, que o curso é bom mesmo! Tem umas palavras bonitas que ninguém entende, é verdade. E pra que se tem que entender se, afinal de contas, a Lei do doutor ajuda a gente? Ajuda é ajuda, ora – e a ajuda não tem dente pra se olhar!
Última vez que nos cruzamos pelas bandas do lugarzinho onde moro, Quermezé falou durante a prosa nuns tal de ‘Vade mecum’ e ‘erga omnes’ que me deixaram com uma pulguinha bem na ponta aqui do meu nariz. Será que o cidadão, de metido a conquistador, tinha dado agora pra ‘erguê homi’!? Esse negócio não me cheirou lá muito bem não. Confesso que carecia de investigar, mas meu amigo, gentilmente, deixou meu coração menos aflito depois de uma explicação que colocou todos os pingos nos jotas. Taí que o curso é bom mesmo! – pena que o ‘Vade mecum’ não é ‘erga omnes’, ou seja, pra todo mundo.
O que Quermezé não esperava encontrar era a pedra no caminho e um tal de Toinzé.
Acostumado a entrar em sala de aula e dela sair sem ter que dar explicações a nenhum professor universitário, Quermezé ficou agoniado com o tratamento do Toinzé. Se algum aluno demorasse a estar em sala, o doutor ‘devogado’, professor de Quermezé, ele mesmo, o Toinzé, metia era falta, mesmo o acadêmico estando presente. Eita correria da peste! A aula agora era rinha, e seu aluno se apresse que o cabresto é curto e a peia é molinha.
‘Não dou presença em aluno fora de sala!’...
Quermezé fechava os olhos ao ouvir essas palavras e se imaginava no jardim de infância. O tio agora, todavia, era bravo e tinhoso e os pimpolhos, futuros doutores, tinham que respeitar a equânime ‘ortoridade’.
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Segunda-feira, uma das muitas do semestre. A primeira aula era dele, Toinzé. Quermezé, única e exclusivamente por causa da presença na lista de chamada, chegou cedo. Sentado, espera o algoz.
Dez. vinte. Trinta minutos de espera e, finalmente, chega Toinzé, atrasado. Quermezé olha para o amigo à sua frente e diz:
– Será que ele colocou a falta dele no livro de ponto dos professores?
– Acho que não, eu pergunto?
– Você é doido, rapaz! Entretanto, ponha tudo nos autos.
Nijair Araújo Pinto
Crato-CE, 7 de março de 2008.
16h28min
Do meu livro 'Lapso temporal'