Eu, criancinha

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Quando eu era criança, meus pais viviam me prometendo uma companhia. Eram promessas soltas e sem muita consistência, mas era um compromisso!

Até aproximadamente meus quatro ou cinco anos, eu e meus pais, talvez não tivéssemos ainda percebido a real necessidade de uma companhia pra mim. Depois dessa idade, eu senti, sim, a falta de outra pessoa, de alguém, sei lá, de qualquer coisa que tirasse um pouco dos meus exagerados mimos – queria ter mais liberdade e me ver livre dos cuidados especiais a mim dispensados. Não entendia o desvelo excessivo dos meus pais, nem podia; queria, isso sim, dividir um pouco a atenção deles.

O tempo passava e nada da companhia chegar. Por causa da promessa, cobrei:

‘Quero um irmãozinho! Quero um irmãozinho!’

Meus pais se entreolharam. Não responderam nada.

O tempo seguia seu curso manso e natural. Agia em todos os e nos fazia diferentes. Meu pai mudou. Minha mãe mudou – bem mais consideravelmente que meu pai, em função de o tempo ter passado na mesma medida para os dois. Percebia-a mais forte e bem menos disposta a brincar comigo. Eu também mudei: e cresci bastante.

O mundo que se descortinava diante de mim, uma criança ainda – eu não passava de cinco anos – era um mundo cheio de porquês, de senões e de expectativas.

O meu mundo de fantasias era um mundo colorido, claro. A criança que vê a vida em preto e branco é uma criança fadada ao insucesso, porque é fundamentalmente no período compreendido entre a infância e a adolescência que o ser humano cria seus sonhos, .cria suas realidades extracorporais e tenta, da sua forma e ao seu modo, concretizá-los.

Nossas fantasias, nossas realizações e todas as demais quimeras, elas se esvaem muito rapidamente, pois o mesmo tempo que anda tão depressa para os adultos também passa para as criancinhas. Sem que nos apercebamos, já estamos crescidos e somos os pais dos nossos próprios filhos.

O ser infantil, inseguro e incompleto, entretanto, que na criança se revela muito mais claramente, ainda existe e persiste no homem adulto. A incompletude humana é que faz de nós eternamente insatisfeitos e desejosos desse algo a mais, de fantasias e de sonhos... Sonhos que depois de concretizados motivam outros sonhos, maiores e mais altos.

Voamos e, nas asas da nossa imaginação, nas cores do nosso pensamento, nas multicores e nas facetas das nossas idealizações, é que reside a beleza da vida, aquele buscar, consciente ou não, que nos torne mais felizes, mais completos e mais pertos Daquele que nos tem como criatura. O homem perfeito, onisciente, onipresente e onipotente, quer de nós a alegria, embora a sintamos de modo temperado e muito inconsistente. A vida é feita desses momentos felizes; temos nossas agruras e desilusões, mas um momento feliz, o singular sorriso de qualquer criança, vale muito, muito mesmo.

... E naquele momento, o meu sonho era de uma companhia. Não me interessava como, quando nem de que forma ela viria. O qu’eu queria era uma companhia pra mim. Alguém com quem dividir meus momentos.

Minha vida era muito boa. Eu estava na escola. Tinha meus brinquedos. Tinha meus sinceros amiguinhos que sorriam pra mim, quando eu merecia, mas que me batiam também quando era preciso!

Eu fazia minhas tarefas. Quando à tarde meu pa estava em casa, brincávamos. À noite também fazia as minhas tarefinhas, ajudado pela minha mãe, mas, fora isso, além da moça que ajudava nos afazeres domésticos, eu sentia falta de brincar, compartilhando um pouco dos meus momentos de solidão dentro de casa e meus pais percebiam isso.

Numa tarde, lembro bem que, ao entrar no quarto dos meus pais, eu os encontrei conversando. Escutei o que falavam e senti, pelo tom da voz do meu pai, o quanto minha solidão os entristecia, apesar do imenso carinho que me davam.

Eles planejaram uma viagem repentina e me prometeram que ao retornarem trariam pra mim o que eu tanto queria: um irmãozinho.

Eu nada estranhava. Afinal, as modificações não eram de agora. Nossa casa vinha passando por modificações e novos móveis foram adquiridos. Reformaram a parte da frente, a fachada, meu quarto... Eu pressentia que um espaço novo seria preenchido brevemente.

Ajeitaram a varanda – nossa casa era toda avarandada, tipo as casa do interior, onde muitas redes podiam ser armadas ao redor. O resultado final era muito interessante e tínhamos a impressão de que as redes faziam parte do projeto arquitetônico original.

Eu adorava quando nossos familiares nos visitavam e os espaços vazios da casa eram preenchidos. Gostava mesmo de rede – nesses momentos de congraçamento familiar, esquecia da minha cama e quase sempre, apesar das caras e bocas da minha mãe, eu dormia com meu avô numa rede bem grande que ficava junto ao pé da goiabeira, fora do alpendre.

Havia um quintal enorme que também sofrera algumas reformas. Construíram duas casinhas, plantaram árvores. Puseram brinquedos – aqueles brinquedinhos de balançar feitos com cordas e pneus, amarrados às árvores. Nossa! Era bom demais ser balançado bem alto... eu aperreava todo mundo e só cansava depois de cair e ralar os joelhos ou a cara no chão.

Era costume meu avô, durante esses encontros, relatar a surra que meu pai havia levado ao derrubar meu tio de uma rede... ‘Sua avó – dizia ele – ficava me atormentando até eu bater no seu pai e nos seus tios, sabia?’

Vovó se defendia inutilmente e o patriarca da família prosseguia a narrativa.

‘Pois é. Eu estava estudando para uma prova do curso de Matemática quando seu tio veio me falar que seu pai o derrubara da rede. Pedi que não me amolasse qu’eu estava estudando, mas sua avó, ouvindo isso, começou:

– Você não põe moral nesses meninos, homem! Eles fazem o que bem entendem dentro de casa... Daqui a uns dias estarão batendo em você.

– Você não vai me deixar estudar não, mulher!

– Pai, o Toinzé me derrubou da rede.

– Deixe-me estudar, rapaz!

– Você lá tem moral com esses meninos...

Ah! Que nessas horas os ‘culodinos’ subiam pro pescoço! E lá fui eu pedi pra seu pai mostrar como havia sido a queda. Fiz seu tio subir na rede novamente e disse pro seu pai:

– Derrube o desavergonhado novamente!

Seu pai nem piscou. Sem piedade, virou a rede e eu tio se estatelou no chão pela segunda vez.

– Vejam se não me enchem mais agora!

Nessa hora, ao olhar para o lado, flagro seu pai sorrindo sem maiores pudores. Peguei o cinto e tome corretivo. Bati nos dois. Seu tio mais velho, coitado, estava no quarto estudando e, mesmo assim, apanhou por ter deixado os irmãos mais novos aprontar. Como eu era bobo. Onde já se viu bater num filho sem razão.

Todos sorriam ao ouvir os causos do vovô. E ele os ia contando um a um, rodeado dos filhos, netos e demais presentes. Pra ele, apesar de as histórias se repetirem todas, era uma festa e ele se sentia novamente o líder das gerações atuais e vindouras.

Eu ouvia o vovô até dar fome. Depois, com as mãos sujas, deliciava-me ao comer a goiaba tirada do pé – e olhe que nunca adoeci por causa disso! Nessas horas, estando a família reunida, eu hoje fico perplexo diante de um dos meus primeiros paradoxos existenciais. Eu era ao mesmo tempo um menino moderno, solitário, mas feliz diante da vida ainda bucólica e pacata de uma cidadezinha emergente do interior. Tinha hábitos de família tradicional, com direito ao terço diário, impreterivelmente às 18h, mas estava preso, também, às armadilhas da correria funcional dos meus pais.

...

Minha avó chegou. Meus pais viajaram e fiquei esperando. Dois dias depois, logo ao acordar, recebi a notícia: meu irmãozinho estava em casa.

Ele era tão pequenininho, tão indefeso. Confesso que senti um pouco de ciúmes e me senti deslocado – todas as atenções estavam voltadas pra ele. Ele era muito, muito lindinho. Só mamava. Só mamava. Só mamava... Mas era de mamadeira! Minha avó reclamava muito. ‘é muita maldade um bebezinho assim não ser amamentado pela mãe’ – dizia ela. Minha mãe chorava e tentava se justificar, alegando falta de leite...

Eu ficava olhando, observando. Conseguiria ser amiguinho dele! Certo é que, a partir daquele dia, era com ele que eu brincava quando estava em casa; era ele que me recebia quando eu chegava do colégio, sempre muito feliz e contente.

Nijair Araújo Pinto

Crato-CE, 8 de março de 2008.

18h13min

Do meu livro 'Lapso temporal'