A fadiga das paixões
O prazer protege no deserto. Mas a proteção tem seu preço, como um êxtase silenciado, uma dor camuflada na vastidão embriagante, no frio noturno, no hábito do deserto.
Hábito de contrastes e choques, das profundezas de uma mente ofuscada à superfície estendida à vista. Desde o início da travessia a estranheza é patente, os choques chegam a cada passo. Nenhum é maior que aquele, compreendido aos poucos, de ter sido largado, ter nascido, existir em pleno deserto.
Eis que um brilho concentrado pede atenção, a luz inteira de cima e do chão num ponto especular distante. O espelho se aproxima, sussurra palavras indizíveis. Compartilhado o silêncio, o deserto é um palco de grandes paixões, em cuja amplidão se revezam o gozo e o conforto, o instante e a duração. Tem-se até a impressão notável de se ver ali o ensaio de espetáculo anunciado, como se antes dos atos propriamente ditos soprassem prenúncios do porvir.
A visão do ensaio quer se prolongar indefinidamente, feito areia se deslocando em mar seco. Então o prazer se prolonga – mas também o desespero. O silêncio dividido corre para trás, vira silêncio pulverizado, assobio cortante do areal sem identidade, assobio de vento que não estanca.
Então o deserto se dirige a todos os lados proveniente de uma direção só. Há uma fonte da qual brota o deserto. Na fonte o deserto é sereno, ínfimo grão de areia em invisível semente de turbulência. Fonte do prazer intuído, e da ausência da espera, do fim da expectativa... Fonte de um estado de essência des-esperada prometida por santos idolatrados ou descrita por alguma vã filosofia.
A solidão desdobrada em si é a fadiga projetada noutro deserto: a fadiga das paixões, delirantes no dia escaldante, trêmulas, tão logo o sol se põe.
- Sobre o filme "O céu que nos protege" (The sheltering sky, Inglaterra/Itália, 1990)
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