Um homem dentro do casaco...
Foi essa a impressão que eu tive quando o vi pela primeira vez. O casaco longo e escuro pesava ainda mais a figura estranha que, volta e meia, visitava o escritório de arquitetura onde eu trabalhava. A voz grave e o semblante cínico combinavam em perfeita harmonia com o traje que usava, eram ambos dignos de uma personagem saída de um conto sinistro.
A razão das visitas era uma amizade que nutria pelo meu chefe. Conversavam e riam muito, nessas horas eu arriscava olhar para ele e, por vezes, cheguei a sentir simpatia pela figura, mas quando passava por mim eu me concentrava no projeto, camuflada entre as plantas. Melhor seria não ser notada. O que ele portava era pesado demais, além do casaco: a alma. Às vezes entrava sem dizer nada, sentava no banco de alguma prancheta vazia, acendia o cachimbo e ficava lendo, depois ia embora deixando no ar o cheiro do fumo de cereja.
A curiosidade falou mais alto e quis saber sobre ele. Era judeu e comunista, de família rica, de muitos bens, da qual tinha cortado relações. Apaixonado por uma mulher que tentava esquecer, mas não conseguia porque a via em todos os lugares, e nos lugares onde não a via procurava por ela estranhando a ausência da ilusão. Colecionava coisas numa mania esquisita, aparas de unhas em caixas de fósforo, por exemplo. Passara um tempo internado em uma clínica psiquiátrica, depois de receber alta passou a viver por aí, sempre dentro do casaco longo, escuro e pesado.
Com o tempo me acostumei com ele e arriscava um bom dia, boa tarde, como vai?... de dentro do casaco ele afirmava com a cabeça um gesto educado. Certa vez veio a mim e perguntou: “quando você vai deixar de ser explorada e passar a ser a exploradora?”... a minha resposta se limitou a um “não sei”... eu não sabia e até hoje eu não sei se esse mundo, em que vivemos, é capaz de girar sem a roda da exploração. Ele não explorava ninguém, mas era um explorado pela sua própria vida, um homem vestido num casaco escuro como se vestisse sua própria sombra.
Um dia apareceu com uma perna engessada usando uma muleta regulável que fazia de assento, desprezando os bancos de prancheta, enquanto passava a tarde lendo e fumando seu cachimbo esperando a hora de ir embora, não sei prá onde. Desde então as visitas se tornaram escassas e, provavelmente por descuido, passou a esquecer o casaco pendurado no cabide que havia no escritório. Talvez fossem os primeiros sinais de um desprendimento.
Ficou algumas semanas sem aparecer e isso já causava certa estranheza e preocupação. Até que veio a notícia de que o encontraram caído, atrás do pano de um teatro, apunhalado pelas costas a golpes mortais. Era o último ato da peça que a vida que lhe pregara, onde a personagem restou à sombra de um casaco esquecido, vazio e desfigurado.