Sexta-feira Santa
Toco um Beethoven de propósito,
Pra me fazer chorar!
Já não posso mais fugir de mim mesma
Há uma dor que já não posso enganar.
Tentando esquecer o mal quem fizeram
Por nada me fazerem,
Interpretei papel inútil e ridículo
Que rir-se-ão com certeza
Se me surpreenderem.
Dia quieto e todos saem
Deixando-me a minha própria companhia,
Por certo gostam de crer que eu me basto
Nenhuma palavra, nenhum comunicado,
Simples partida!
Depois de me negarem convivência, conversa, amizade
Vem tal oferta da comida, sustento bobo da carne.
Pra que me hão de dar comida se já antes negaram o alimento da alma?
Que direito têm de pedir compreensão e calma?
Haviam antes me privado do gozo da harmonia,
Esta que só se atinge combinando notas, nunca ao executá-las sozinha.
Há pessoas que nunca entendem o que elas representam,
Crêem ser útil só o que elas desempenham
Não conhecem que alguém pode carecê-las
Que pode alguém querê-las, pelo que são
E não pelo que de oferecer hão.
Há pessoas a quem muito damos valor
Gente que mal supõe provocar essa dor
Dor que me consome por não ter sido lembrada nas outras horas
Por só ter sido convocada no ensejo da obrigação social
Mas quem há de me reparar este mal?
Fico aqui com meu Beethoven
Que também sozinho já tocou,
Que também sozinho já chorou,
Que como eu, sentiu-se algum dia, perdido,
Esquecido, alheio ao que o mundo todo tramou.