REMINISCÊNCIAS:A QUARESMA DA MINHA INFANCIA
Após o Domingo de Ramos o mundo mergulhava no luto.As imagens,nas igrejas,cobertas de roxo,as missas suspensas,ninguém gargalhava,a alegria sepultada sob o pesado guante da fé.As estações de rádio tocavam músicas fúnebres,ou,quando muito,sonatas de Bach,sinfonias de Beethoven,réquiens,músicas sacras;era quando podiamos ouvir os clássicos,nos nossos rádios,que so tocavam música popular.Nesta sexta-feira estava vedado,também,Vivaldi,Strauss,Heandel..
A tristeza era cultivada,imposta pelos dogmas que ninguém ousava quebrar e pelo medo da maledicencia,dos comentarios,da rejeição social.De repente,caíamos na Idade  Média.A rotina familiar,tambem,sofria mudanças;a carne desaparecia do menu,restrito a peixes e frutos do mar.As consoadas das sextas -feiras eram famosas e esperadas;comia-se como num convento.Familia que se prezasse não levava á mesa menos de dez pratos:vatapá,caruru,efó,moqueca de peixe,camarão,bolinhos ou salada de bacalhau,purês,saladas diversas,feijão de leite;quando o bacalhau era  o prato principal "la piéce de resistence",como se falava,vinha na forma de "bacalhau á portuguesa,com legumes,á Gomes de Sá,com purê ou ao Brás;iguaria para mesas mais modestas,pois,nesse tempo,em que se amarrava cachorro com linguiça,bacalhau era barato;até tinha um ditado:"prá quem é,bacalhau,basta",quando se queria depreciar alguem.Toda a familia reunida ao redor da imansa  mesa,o patriarca da familia fazia as orações,todos confraternizavam,pediam a bênçao aos pais e o perdão dos agravos,tudo regado a litros e litros de um bom vinho e o pão,indispensavel.As mulheres tinham um ar ansioso,talvez,porque,desde o domingo,estavam em jejum sexual,os casais impedidos de fazer amor,alguns para evitar tentações até mudavam de alcova.As crianças,proibidas de rir,de  brincadeiras barulhentas,de dizer palavrão,para não ter um ôvo quente enfiado na língua.Qualquer semelhança com a Santa Inquisição não era mera coincidencia.Aminha mãe,minha avó e tias,iam á Igreja cobertas de preto,como viúvas,mitenes nas mãos que levava o Breviario,cabeças cobertas por finos veus de renda e tule e um rosario nas mãos.O ar era pesado,lúgubre,dava medo.à tarde saía a Procissão do Sr.Morto,as matracas batendo aquele ritmo surdo,o santo no andor,quase humano,coberto de sangue,feridas expostas,dessangrado e magro,coberto apenas por um pano escarlate,o torso nú.Nossa Sra. das Dores,toda de roxo,acompanhava o  Filho,a expressão de dor,comovente,palpável,contagiosa, que a bela imagem portuguesa reproduzia.Isto durava até as manhãs de sábado,quando,ás dez horas,os sinos tocavam alegremente,as crianças,finalmente podiam sorrir,os moleques gritavam álacremente nas ruas:-Aleluia,aleluia,comida no saco,farinha na cuia.Era a  alegria que voltava.
Miriam de Sales Oliveira
Enviado por Miriam de Sales Oliveira em 21/03/2008
Código do texto: T910470
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