Cultivo à distância
O olhar aceita um sorriso e um abismo se desfaz. A parede de vidro some quando nos damos as mãos. O círculo indevassável de cada um abre passagem ao impossível na tangência do outro, que resume o espaço, suspende o tempo e distrai o abismo que nos aparta dos mundos fora de nós.
Absurdo é ganhar o privilégio do contato e perdê-lo inexoravelmente, no emaranhado de relações fluidas da “vida líquida” de que fala o sociólogo Zygmunt Bauman: “Não há como saber, pelo menos com antecedência, se viver juntos acabará se revelando uma via de tráfego intenso ou um beco sem saída”, escreve ele.
E o que há como saber com antecedência em nossa vida líquida que a cada dia parece escorrer mais rápido à revelia das dúvidas que imploram por menos pressa em direção à última gota?
O tempo de nossas relações líquidas é entrópico: desorganiza encontros, desarmoniza até os laços natos. Em um dia dado de sua vida, pode estar mais perto quem está mais longe, e a ausência dos presentes pode ser bem clara. O pior tipo de romantismo agradece, o pior tipo de amor, ainda que seja o melhor consolo.
O tempo, no entanto, é também antrópico – depende o seu movimento dos passos que a gente dá. “Amar se aprende amando”: o tempo passado não destrói, apenas, relações enfraquecidas com os anos. A construção é feita igualmente no tempo. Poucas são as ligações fortes, em geral nutridas desde o berço, ou mantidas intactas no percurso.
Numa época de escassez e velocidade, a água, que já foi símbolo de placidez, é metáfora da turbulência. Sensações e sentimentos fluidos são turbulentos. Precisamos redescobrir a água. Ao invés de nos atirar à correnteza, mergulhar lentamente, reencontrar a lentidão.
Para reencontrar os mundos possíveis dentro e fora do nosso. Cada encontro não tem que ser um esbarrão. Lembranças podem ser doces e longas, e não um fragmento de memória quase cego de tão veloz.
Temos medo das invasões. De entrar sem convite, receber sem vontade. Ainda assim nos estranhamos – e talvez o temor seja o próprio estranhamento. Não há jeito. Familiares se estranham, grandes amigos se estranham, pessoas íntimas se estranham. O que nos leva a buscar em desconhecidos, e no convívio breve, momentos interessantes.
Aproximar-se é invadir, afastar-se é abandonar, no leito de água corrente. No leito de água corrente, qual a melhor distância para dois? Qual a melhor para todos?
Aproximar-se sem invadir, afastar-se sem abandonar, mergulhados num mundo alheio que nos reconhece em progressão – eis o cultivo do outro que nos arranca de vez em quando da abissal condição humana.
Cultivo capaz de transformar habitantes paranóicos em um mundo sedutor.
(Publicada em www.cameracronica.blogspot.com)