Em palpos de aranha — Uma aventura escatológica

 


“Que papel higiênico mais vagabundo!”, pensei com irritação, sentado no vaso sanitário como um Leopold Bloom dos trópicos, pois também eu tentava distrair-me, durante o milenar processo, lendo e comentando em silêncio velhas notícias numa folha de jornal estendida aos meus pés. Não me sentia tão rico no monólogo interior quanto o famoso personagem de James Joyce, mas o lance da corrente de consciência era o mesmo.


O que não corria nada bem era o papel. Puxado pela aba solta do rolo, já nas últimas, de tão fino e áspero ele só faltava desmanchar em minha mão ou rompia invariavelmente antes da linha picotada, não me permitindo dobrá-lo para ganhar mais consistência. Caso de Procon, não tenham dúvida.


Reciclagem das reciclagens, tudo é reciclagem, declamei, imitando o poeta bíblico. Como limpar a bunda com este papel super-reciclado sem emporcalhar os dedos? Se estivesse em casa, não tinha erro: era dali para a ducha — em condições normais, dou minhas cagadas pela manhã e tomo um banho em seguida. Mas nesse dia eu estava num banheiro de boteco do centro da cidade, com gente esperando numa fila única de mijões e cagões, cada qual mais apertado que o outro.


Ouvindo a fila crescer, entrei em desespero. Vamos lá: o pedaço bloomiano de jornal, fora de cogitação — além de velho, pisoteado por gerações de biriteiros, era sujo e mal cheiroso. A torneira da pia não funcionava. Nenhum pano de chão à vista, para o caso de uma saída radical. Lamentei, inclusive, não ter um lenço comigo, nem meus rascunhos de crônicas e poemas nos bolsos da calça de brim.


Súbito, houve um clamor de revolta do lado de fora, e um vozeirão assustador infiltrou-se pelas varetas do batente: “Como é que é, compadre!”. Correu-me um frio pela espinha e respondi com timidez: “Só um instantinho.” O malandro não facilitou as coisas:”Só um instantinho é o caralho! Estou me borrando todo.”


“Vou entrar na porrada”, disse então comigo, trêmulo, suplicando aos bons deuses uma idéia, a mais estapafúrdia  que fosse, naquele cubículo fedorento. Que veio. Veio no momento exato em que o vozeirão, apoiado por todos na fila, anunciou que ia arrombar a porta e arrancar-me do trono na base do cascudo. Apavorado, tirei rapidamente a calça de brim e, num golpe de mestre, não hesitei em sacrificar minha cueca branca, rasgando-a em dois pedaços que fizeram um belo serviço de limpeza escatológica. Dei a descarga, vesti novamente a calça, embrulhei os trapos sujos na folha de jornal, e saí.


Saí debaixo de vaia, é verdade, mas com um sorriso mais sacana que o da Monalisa. Pois era a hora da vingança. Postei-me defronte do boteco, do outro lado da rua. Queria ver os cornos do vozeirão depois de passar pelo mesmo drama que eu. E torcia muito, perdoem-me pela crueldade, para que ele não tivesse o hábito de usar cueca.

 


[23.2.2008]