Essencialmente Narcisistas
Mais um dia de tortura no colégio. Sete e quinze da manhã e a primeira aula de segunda-feira é História. Adoro História, mas depois de uma festa no domingo, é meio impossível ficar acordada. Estava sentada na penúltima carteira ouvindo o que o professor dizia sobre mitos gregos. “Os gregos criaram vários mitos para poder passar mensagens para as pessoas e também com o objetivo de preservar a memória histórica de seu povo. Há três mil anos...” bom, a partir desse momento devo ter cochilado um pouco. Acordei com o ronco de meu colega de trás. Mas isso não vem ao caso, o que importa é que acordei bem no momento em que liam o mito de Narciso.
Todos devem conhecer esse famoso mito que surgiu da superstição de que contemplar a própria imagem prenunciava má sorte. Narciso simbolizava a vaidade e a insensibilidade, era apaixonado pela sua beleza. Seu egoísmo provocou o castigo dos deuses. Apaixonou-se pela própria imagem e essa paixão custou-lhe a vida.
Comecei a pensar a respeito, e na realidade esse mito nos mostra que o amor a si mesmo é fundamental pra construção de nossas vidas. Mas há a medida que é benéfica e há o excesso, que prejudica principalmente os relacionamentos e a si próprio.
Narciso é extremamente belo, porém é digno de outro adjetivo, orgulhoso: rejeita o amor, não dá valor a quem o ama, não quer se envolver com ninguém. Ao recusar o amor ao próximo, Narciso se empobrece, mergulha numa paixão por si mesmo, mas nem reconhece que é ele, não sabe distinguir quem é ele e quem é outro. Assim ele morre, buscando se juntar consigo mesmo.
Temos muitas coisas a pensar e rever neste mito. Há um Narciso que está vivo e atuante em cada um de nós, respeitáveis (ou nem tanto) cidadãos do mundo, em pleno século XXI.
O mito explica e faz crer, aos gregos daquela época, que a vaidade muitas vezes ofusca os nossos olhos e que esse sentimento é causador de males como o que aconteceu com Narciso.
Mas, se Narciso é alguém que se apaixona pela própria imagem e nós, quem somos? Somos essencialmente Narcisos. Nos espelhamos de alguma maneira em algo. Os reflexos acompanham nossos movimentos, definem nossos contornos e nossos limites. Os reflexos nos dão uma aparência mais nítida, e por isso gostamos deles. Espelhamo-nos no próprio reflexo, logo não nos espelhamos em nada. Afinal, é um paradoxo ter a si mesmo como exemplo.
Quando olhamos o próprio reflexo, sentimo-nos compreendidos e amados, até mesmo admirados, reconhecidos pelo que somos, pelo que estamos nos tornando, pelos projetos que temos. Este reconhecimento de nós para nós mesmos limita nossas mentes (já limitadas naturalmente). Se não sabemos controlar isso, acreditamos que tudo gira em torno de nossos umbigos e que tudo age em função de nós. O próximo passo é assim como Narciso, atrofiarmos.
Já sinto as entranhas da garota que senta ao meu lado definhando. A aula no seu auge, no maior momento filosófico, a hora em que nossos pobres cérebros adolescentes deveriam estar fervilhando de idéias e pensamentos e a bonequinha se olhando no espelho e passando gloss? Somos o futuro dessa Nação e a maquiagem sempre fala mais alto que o conhecimento. Estou cercada de Narcisos. Narcisos sem cérebros. Narcisos sem cérebros, que roncam. Narcisos sem cérebro, que roncam e passam maquiagem.
Tudo bem, talvez nem tudo esteja perdido. O garoto atrás de mim pode ir dormir mais cedo amanhã, a Barbie do meu lado pode, algum dia, ajudar crianças carentes na África. Ou não. O que importa é que existem outros que podem renascer para a evolução de um mundo melhor. Quem sabe um maluco não inventa uma máquina desintegradora de espelhos? Mas para haver evolução é preciso que haja reflexão, mas nesse caso da mente e não do corpo.