Palimpsesto
Se o mundo fosse um pergaminho muito antigo, cada vivente em seu tempo seria uma página reescrita à exaustão. Do nascimento até a morte, palavras amontoadas – e o silêncio entre elas – relatariam o drama, o tédio e as paixões de um indivíduo em sua prisão inata. Letras sobrepostas no palimpsesto do mundo dariam uma versão entre bilhões de versões no tecido de um pergaminho antigo.
Cada segundo gravado seria apagado pelo mesmo motivo que o teria gerado. Os indivíduos contariam a si as suas histórias, e buscariam do lado de fora a identidade que escapa no reduzido espaço em palimpsesta grafia.
Os entes inscritos se sucederiam como um som grave repetido com o objetivo de algo muitas vezes maior que um som repetido, como números marcados em papel tão usado quanto esquecido. Números rabiscados feito seres concebidos por magia, e prolongados até o fim que confere o único sentido possível.
O som emitido por cada indivíduo, entretanto, esbarra em outro indivíduo na cacofonia do antiqüíssimo pergaminho. As histórias não apenas se amontoam: elas se entrelaçam, estranhamente.
Pois não é um inferno, e sim um mistério, o que são os outros. A voz alheia é voz que confunde. O que o outro faz será sempre um caso de perplexidade para a consciência fugaz que o fita – talvez como monstro na escuridão, ou como um anjo luzente que fala, para lembrar Shakespeare.
Seríamos mensagens cifradas à espera de leitura, símbolos perdidos no vácuo de signos sem chaves espalhados nas faces ansiosas demais. Restaria apelar ao reflexo tênue dos contornos alinhavados antes, uma vez que o brilho ofuscante dos que são escritos com a gente não tem como ajudar tanto.
Palimpsesto gigante, a cada órbita o planeta teria novas histórias, como imaginou Carl Sagan. Pelas histórias contidas, a Terra parece algo além de um ponto minúsculo no pergaminho do universo. Pelas histórias que nos contam, lançamos a vista na direção de outras rimas, adivinhando as sílabas como se fossem de um ato nosso.
Se tudo não passasse de uma concha inóspita, a mente, sem alternativa, se inventava.
E se tu não existisses – a outra voz, uma outra palavra, monstro do escuro, anjo luzente – eu dar-te-ia forma, e uma janela bacana dentro da minha história.
(Publicada em www.cameracronica.blogspot.com)