MINHA VIDA DE REVOLUCIONÁRIO

Estou em um sebo e me encontro com um velho conhecido.

- Serjão! Há quanto tempo, amigo. Como vai o Altamiro?

- você não sabe?

- Não. Há muito tempo não vejo o Altamiro.

- Altamiro largou tudo aqui e foi para a Venezuela treinar junto com as milícias de Chávez...

- Jesuis!!

O personagem a que estamos nos referindo foi, talvez, o mais marcante que conheci em toda a minha vida. Encontrei esta figura, talvez o último marxista-leninista do planeta, na faculdade de filosofia. Eu era um garoto ainda, e fiquei fascinado com a cultura que ele tinha. Falava diversos idiomas e tinha uma coleção de cursos superiores inacabados. Sabia de tudo: medicina, física, matemática, química, política e etc.

Era um leitor ferrenho, principalmente quando encontrava um “inimigo”. Inimigos eram aqueles intelectuais que estavam do “outro” lado e que eram os responsáveis pela renovação da ideologia da “dominação”. Quando o encontrei, ele lia Heidegger constantemente. Citava todos os textos deste autor, complexo e profuso.

- amigos a gente escolhe pela beleza; inimigos, pela inteligência!

Comecei a acompanhá-lo por todos os lados. Ele me adotou como seu natural “sucessor”. Íamos para bares e discutíamos como seria possível realizar a revolução comunista a partir da organização das massas dos miseráveis, de onde haveria de sair os demais intelectuais orgânicos para multiplicar o pensamento revolucionário libertador.

Ele começou a me apresentar os velhos amigos que ele fora juntando nesta vida de subversivo. Ganhei dezenas de livros, de Marx, Lukács, Lênin, e outros, para aprimorar a minha criticidade, e assim evitar que eu recaísse nas tentações do capitalismo alienante. Na casa dele, vi obras em diversas línguas: “sein und zeit”, “l’ être et le neant”, quarenta obras de Lênin, todas com devidas anotações nas margens, para mostrar que ali tinha um leitor que merecia muito respeito.

Fazíamos festinhas “revolucionárias” na casa dele. Evidentemente, quando a mulher dele não estava em casa. Aí preparávamos bastante mojito e rolava muita rumba. Ficávamos todos bêbados, aquela malucada toda. Nunca me esqueço de um oito de outubro, quando comemorávamos a morte de Che Guevara e soltávamos fogos depois de queimar uma bandeira dos EUA. A mulher dele chegou do trabalho e botou toda a cambada pra correr.

- fora daqui, seus vagabundos!

- Não fala assim de meus amigos revolucionários!

- E você fique quieto senão te dou umas cabadas de vassouras!

Evidentemente, dona Cecília não compartilhava com as idéias do marido, o que significava que ele tinha uma quinta-coluna dentro de casa.

Convivi bastante tempo com este meu amigo. Chegamos a dormir bêbados na mesma cama. O que nos separou foi a chegada de uma moça. Ele, inclusive, foi meu padrinho de casamento. Mas tudo começou a ruir quando dei uma notícia que lhe causou profunda decepção:

- vou fazer Direito

- o quê?! Vai abandonar a nossa luta revolucionária e passar par o lado do inimigo?

- Sacomé, né...a Lúcia está grávida, e meu salário é uma merreca pra poder dar a educação que minha prole precisa ter...

Ele custou a acreditar que isto estava acontecendo. Me tentou demover da idéia, mas quando me viu passando de terno e gravata, viu que não tinha mais jeito. Hoje em dia raramente nos encontramos, e quando isto acontece é para falar de como estão os filhos...