O sonho do vazio

Em maio do ano passado, se Evaldo Coutinho estava certo, testemunhamos uma hecatombe universal: a morte do filósofo, como todas as mortes, matou o ser que nasceu com ele. Para Evaldo, o ser nasce e morre com cada consciência. O ser é como um sonho – pelo avesso.

Os sonhos sabem muita coisa – escreveu Kafka – mas não sabem de onde vêm. Como um sonho dentro de outro, podemos não ter idéia de quem somos. Ainda assim, arriscamos esboçar o que sonhamos.

Há sonhos de toda origem, sonhos saltam em qualquer lugar. Aqueles surgem no escuro, descobrindo espelho escondido; esses cochilam à luz do dia como se a noite não valesse. O reflexo daqueles é uma centelha no breu; a sonolência desses é uma sombra contra o azul do céu. Aqueles trazem euforia ou coragem, esses repartem indolência e um cansaço sem fim.

O sonho de Evaldo Coutinho, reconhecia ele, era um sonho triste, mas estava longe de ser sombra. O que chamou de “cintilação cósmica”, com o ser explodindo a cada segundo no universo, é uma compensação razoável para a finitude absoluta. Serve de consolo como um sonho novo, igual a todos os outros, sem saber disto.

Os novos sonhos são mais ousados quando não se importam com seu status real. Ficam à vontade na adversidade, até zombam da necessidade vital. Os sonhos novos não se preocupam com quem os sonha: é problema dos sonhadores achar um porto no mundo para o repentino naufrágio ideal.

Antigos sonhos são tímidos, após algum tempo à deriva sem uma ilha perdida para descansar do esforço que é habitar o mar. Sonhos antigos já não dormem, perambulam como algo vago nos olhos, o crescimento detido como uma história encerrada na mente sem ter com quem conversar.

Entretanto, no vento mais velho que o mundo, escuta-se casos de sonhos nascidos sem força, como se lhes faltasse o ímpeto dos sonhos quando nascem. E de outros, tão sonhados quanto intensos, alheios à solidão oceânica dos irrealizados, como se não lhes tocasse a notícia que avisa ao sonho antigo da incapacidade de ser concretizado e da probabilidade de ser vão.

No mesmo vento circulam rumores de sonhos deslocados no ar: prontos para surpreender um sonhador virtualmente sensível àquilo que nunca se viu, e talvez nunca se verá. Pedaços puros de substância onírica atravessam o turbilhão da existência feito bombardeio de fótons sobre a matéria humana organizada no corpo e armazenada enquanto a vida vive. Daí a lenda, que persiste – o sonho é o que sobrevive.

Evaldo Coutinho foi um lúcido sonhador: o sonho do vazio não é vazio, é sonho que transcende, como se ao vazio fosse possível sonhar.

Fábio Lucas
Enviado por Fábio Lucas em 07/02/2008
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