O Homem e a Máquina
Em nossos dias, surge uma tendência a qual identifica-se como o estágio de união entre o homem e a máquina. Inventariando a história da técnica a partir da Grécia Antiga podemos encontrar o conceito de téchné, que significava a arte de fazer, mostrando que a técnica acompanha o homem , particularmente o Ocidental, desde as suas origens. A própria idéia platônica de técnica, que o filósofo coloca como inferior ao pensar, sendo por este motivo que na sua república os artesãos, e aqui entende-se por artesão todo e qualquer homem que dedica-se ao labor manual, em uma classe inferior a dos filósofos, pensadores por excelência. Tal divisão legada pela filosofia platônica, instituiu a supremacia da teoria em detrimento da prática, não obstante maior valorização ao pensador do que ao artífice. Este período já traz a concepção, que irá perdurar por muito tempo, do Homem X Máquina, pois a máquina era o resultado do trabalho técnico, manual, logo de menor valor ao homem do que o conhecimento intelectual.
Permanecendo no fio condutor da história e fazendo as devidas ressalvas ao período Medieval, bem como a crescente utilização da técnica, sendo este um período de grandes inventos e descobertas a partir de todo um trabalho técnico, podemos dar um salto ao período da Revolução Industrial, em que a relação Homem X Máquina torna-se mais acirrada e chega ao seu ápice. Com o aperfeiçoamento das máquinas e a necessidade econômica de uma produção em maior escala e menor tempo, o homem viu-se trocado, provocando em alguns grupos uma imensa revolta contra a máquina, posto que julgou-se ser ela a culpada da modificação do sistema de produção e desencadeadora da falta de trabalho, pois até então a demanda por mão de obra era imensamente maior. Frente a este estado de transformação econômica e de produção, Karl Marx analisa a situação ponderando que a substituição do homem pela máquina iria trazer maior conforto ao trabalhador, porque este teria sua carga horária reduzida e ainda assim produziria mais, fato também importante e necessário face ao aumento populacional da cidades. Contraditoriamente ao pensamento marxista, o que aconteceu foi uma alta exploração da força de trabalho de poucos indivíduos pelo detentor dos meios de produção. Percebendo o desfecho da história Marx reconsiderou seu pensamento, não condenando a máquina, mas doutro modo evidenciando a usurpação do homem sobre o homem em virtude do controle dos meios de produção e o refinamento do mecanismo exploratório.
Com outro salto na história, somos levados às considerações heideggerianas a respeito de um estágio humano em que “a técnica não é um instrumento neutro nas mãos do homem, que pode usá-la para o bem ou para o mal, nem constitui um acontecimento acidental no Ocidente. (...) a realidade é que a técnica é o resultado natural do desenvolvimento pelo qual, esquecendo o Ser, o homem se deixou arrastar pelas coisas, tornando a realidade puro objeto a dominar e explorar. E esse comportamento, (...) trata-se de uma fé, a fé na técnica como domínio sobre tudo”. A angústia na descrição do filósofo retrata um homem que perdeu o interesse pelo Ser e fixou-se nos entes, quando dantes primava-se pelo encontro com o Ser, pelo seu desvelamento, agora, o homem inebriado pelo desenvolvimento científico, quis fazer da física a metafísica supondo que as coisas aprazer-lho-iam mais que a busca pela verdade ontológica. Destarte o plano ôntico tornou-se único. Neste exato momento a relação entre o homem e a máquina já não era mais de aversão, passando de Homem X Máquina para Homem E Máquina.
Entretanto o filósofo francês Paul Virilio contrapõe-se à Heidegger, dizendo que este não havia entendido o processo histórico ao qual põe-se a interpretar. O homem não foi assaltado pela máquina no seu eu-mesmo, perdendo sua autenticidade, que é o que Heidegger quer fazer entrever, mas sim, coloca Virilio, apresenta-se em estágio de fusão, numa complementaridade entre homem e máquina. A relação ora estabelecida é a de Homem-Máquina, numa nova construção do conceito de homem, daquilo que define o homem enquanto tal, se for isto possível.
A caminhada histórica pelo advento da técnica, e naturalmente da máquina, aporta em nossos dias com extremo furor, provocando em todos ou paixão ou repulsa, e a certeza de que o paradigma de ser humano construído pelo pensamento Ocidental está para além de abalado, insustentável diante da voracidade que a técnica se impõe face à fragilidade humana.
A linha traçada, remonta a idéia de inevitabilidade diante do progresso técnico, por conseguinte sem deixar escapar também a pretensa valorosidade da técnica para todos. Tal análise comum a muitos pensadores da atualidade, permeia os caminhos históricos a respeito da “técnica” e vislumbra uma provável estética pós-moderna advinda do novo conceito de homem, sem dar a devida importância, prefiro pensar que intencionalmente, aos complicares sociais, econômicos, filosóficos, ontológicos, éticos que circundam esta re-elaboração da pessoa humana.
Convém atentarmos, entrementes, que o mundo contemporâneo possui particularidades que o fazem algo bem mais complicado de se interpretar do que outras épocas guardadas na história. A suposta evolução humana que conduziu a este estágio técnico capaz de manter vivo um organismo através da manipulação genética de células infeccionadas é o mesmo que produz armas químico-biológicas capazes de dizimar milhões de pessoas em algumas horas; de produzir energia para servir dezenas de cidades a partir do beneficiamento do urânio ou valer-se da mesma técnica para criar bombas nucleares; de aperfeiçoar a utilização do laser em cirurgias reduzindo enormemente o risco à vida do paciente ao tempo que também utiliza este laser na construção de equipamentos bélicos para programas de defesa nacional, fictícios. Essas entre tantas outras situações em que a técnica mostra-se amável ou não à raça humana.
Em verdade o que queremos questionar não é o fato do desenvolvimento tecnológico, das descobertas científicas, do aperfeiçoamento das técnicas nas mais variadas áreas, não, a técnica é e continuará sendo um elemento do plano ôntico, uma coisa a serviço do homem, porém o que se faz necessário por ao crivo do esclarecimento filosófico é a proficiência conferida a esta técnica. Como de forma perspicaz observou Marx, a técnica está servindo para a manutenção com extrema sutileza da exploração do homem sobre o homem, ou em termos mais poéticos com Heidegger, dizendo que o homem parou de pré-ocupar-se com o Ser, ou em outras palavras com o Dasein, com o ser-lançado-no-mundo, consigo mesmo, para manter-se no plano das coisas, pré-ocupando-se com os entes. “ O senhor do ente não é mais senhor do Ser”.
A crítica que lançamos a esta tendência hodierna, é a mesma que tantos outros filósofos já fizeram no decorrer da história, de que precisamos observar a realidade humana a partir de pressupostos que tenham a vida humana e a sua integridade como o bem supremo. O frenesi pelo novo que de forma absurda acomete nossos contemporâneos, impede a necessária indignação frente aos rumos a que técnica é conduzida. Por seu turno, a máxima determinista, “assim foi e assim sempre será”, obriga-nos a engolir uma conjuntura de subserviência metafísica, escondendo as bases do caos social em que vivemos. Mais que exaltar e render glórias ao desenvolvimento de uma racionalidade capaz de promover avanços, cridos como progresso, trazidos pelos meios de comunicação de massa e por todos os outros veículos formadores de opinião, como importantes e necessários à vida humana, é dever nosso inda mais do filósofo, colocar-se a interrogar acerca dos porquês de tais acontecimentos. Os deleites com a boa nova, ficaram a cargo dos levianos, aos que pensam e perdem a tranqüilidade de espírito diante destas questões cabe promover o esclarecimento, o deslindamento de mais uma persona.