O inferno do mercado e o alívio da memória (Cronica 4)

Acordei com o som do despertador – aquele barulho horrível que eu mesma escolhi. Parece uma sirene, e até hoje não entendo por que não troquei, talvez porque todos os outros sons que experimentei me faziam desligá-lo e voltar a dormir. Levantei, com o corpo ainda resistindo ao dia que começava, e fui direto para o banho gelado, odeio água quente, ela me dá mais sono e uma preguiça ainda maior, fora que banho quente em dias quentes você já sai do banho suando. Esfrego o corpo com pressa, tentando acordar de verdade. Depois, escovo os dentes, me arrumo no automático, quando tudo está certo, pego a bolsa e, como sempre, fico alguns minutos procurando o óculos, tem dias que eu encontro, outros parece que ele simplesmente desaparece. Cada dia ele acaba em um lugar diferente pela casa. E a culpa é totalmente minha!

Quando finalmente o encontro, retiro o fone da bolsa, coloco nos ouvidos e, pelo meu humor, dou play em "José Mauro – Rua Dois". Subo na bicicleta e me lanço pelas ruas em direção ao trabalho. É segunda-feira, e com ela aquela tristeza persistente que vem do pós-domingo, aquele vazio de fim e inicio de semana. Pelo menos hoje está ventando, um vento gelado, que quase me faz querer correr uma maratona, as nuvens se arrastam no céu e o sol não queima minha pele, o que já é uma sorte pelos últimos dias, com o calor infernal logo pela manhã.

No caminho, sempre passo em frente ao cemitério. E, como de costume, repito para mim mesma: "E pensar que meu futuro vai ser aqui... que merda." Esse pensamento, ao mesmo tempo cômico e mórbido, me faz refletir sobre a ironia da vida. Começo, meio e fim. Eu ainda não sei qual das fases estou vivendo, mas de uma coisa eu tenho certeza: estou amando e ao mesmo tempo sempre me questionando sobre o que existe além da minha angustia por viver e angustia por não viver!?.

Mais adiante, perto do semáforo, os vendedores se espalham pela Av. Abílio Duarte. Frutas frescas, molho de pimenta, mel e até redes. Eles são um retrato da luta diária, de quem tenta vender um pedaço de vida em cada esquina. E eu os observo, me perdendo um pouco nesse vai e vem de gente, de vozes e olhares, barulhos dos carros fazendo seu tráfego.

Chego ao trabalho e, como sempre, sou recebida pelo cheiro familiar da farmácia, que, por mais estranho que pareça, tem algo similar de hospital, uma mistura de remédio e álcool no ar. Estaciono a bicicleta no fundo, e o corpo já pede o cheiro e o gosto do café.Bato o ponto e sigo direto para a cozinha — o segundo lugar onde meus pés automaticamente me conduzem.Ali, finalmente, encontro o consolo de sempre. Aquele café quente, a mão que já sabe os movimentos, o cheiro que preenche o ambiente e vai se espalhando pela minha rotina. É o ritual que dá início ao meu dia, com a certeza de que, no mínimo, o dia será suportável.Encho a chaleira com água e a coloco no fogo. Em seguida, preparo a garrafa, separo o coador, o café, o Melitta — tudo no lugar certo. Como de costume, dou play em Milton Nascimento, que preenche o espaço enquanto a água vai aquecendo. A música se mistura ao vapor do café, criando um momento só meu, uma pausa que, de alguma forma, me acalma e me prepara para o que vem pela frente.

E hoje, pelo jeito, vai ser tranquilo...

São 13h. O movimento na farmácia diminuiu, e a paz do almoço chega com sua pausa tão esperada. Tudo parece seguir o curso de um dia comum. Mas logo me lembro de uma tarefa urgente: preciso passar no mercado.

Para mim, horário de almoço, mercado, calor escaldante e correria juntos formam o verdadeiro inferno — a obra-prima perfeita para o tinhoso conseguir me atormentar sem esforço nenhum. Odeio calor, odeio correria, odeio. Na verdade, tudo que envolve pressa acaba sendo um pesadelo pra mim. Sempre que estamos apressados, alguma coisa vai demorar ou vai dar errado. É como uma lei do universo, a famosa Lei de Murphy. Me recuso por completo, salvando assim meu dia, o dia do açougueiro, o dia do repositor do hortifruti, o dia do caixa do mercado... e, o mais importante, não depositando nenhum ódio mentalmente, nem mesmo xingando ele, o CRcode ou o aplicativo do banco do celular. Calma, não sou assim, prometo! Mas sabe como é, né? Na correria, a gente solta uma insatisfação com tudo e todos.... Mentira, sou um pouco assim sim, hahaha! Até porque sou balconista e já passei por isso com clientes que estavam com pressa, e eu só dava risada internamente, porque já passei por tudo isso. E hoje, me recuso a fazer o mesmo, salvando assim minha sanidade e a sanidade do próximo!

Porque, convenhamos, quem faz compras no mercado com calma, sem se preocupar com o tempo, sorrindo e feliz, ou é rico ou está completamente louco da cabeça. Porque pobre, trabalhador, faz compras preocupado com o preço, com o tempo, com o que vai dar pra comer no mês — ou na semana, se tiver sorte. E, na situação atual do país, então...

E eu? Bem... Já dá para ver que não sou rica pelos relatos, né? Agora, um pouco louca da cabeça? Com certeza! À beira de um surto psicótico? Principalmente! Com meus pensamentos intrusivos a beira de um escape!? E como!!

E assim eu fiz. Me recusei a enfrentar aquele caos, sabia que era uma das escolhas certas. Decidi ficar na cozinha da farmácia, onde o ambiente parecia mais tranquilo, onde a luz do sol batia na parede em frente à cozinha e se espalhava pelo ambiente, criando uma iluminação suave e amarelada que preenche o espaço todo. Aproveitei para estudar a matéria da faculdade na qual estou penando.

Foi então que, em meio ao silêncio, uma voz conhecida começou a ecoar no fundo das minhas memórias. Era uma voz que eu não ouvia há tanto tempo, mas que imediatamente me trouxe à tona lembranças de momentos simples e acolhedores. Era a Tia Nice.Por um instante, parei tudo o que estava fazendo e deixei aquela voz se acomodar dentro de mim. Como se o tempo tivesse dado uma pausa e, naquele exato momento, eu pudesse reviver a sensação boa que ela sempre me transmitia. Tia Nice, com seu jeito suave e sua voz aguda, surgiu de onde eu menos esperava. Aqui, na farmácia?? Em Assis???

Imediatamente, corri até o balcão e procurei aquela voz familiar. Quando a encontrei, fui direto até ela e a abracei. E, por incrível que pareça, nem o cheiro suave, nem o toque delicado haviam mudado. Faziam muitos anos que não a via, mas, ao vê-la de volta, foi como se o tempo tivesse parado e voltado. Ela foi uma presença essencial na minha vida, mesmo não sendo minha tia de sangue, Tia Nice me criou como se eu fosse filha da sua irmã, com um carinho e paciência de uma verdadeira sobrinha.

Ao me ver, ela se espantou, mas logo me reconheceu pelo abraço. Sorriu tanto que os olhos quase desapareceram. "Paulinha! Como você está? Que linda! Que saudade, quanto tempo não te vejo!", exclamou, me apertando num abraço apertado. E, como se fosse um ritual, começou a passar a mão nos meus cabelos, tentando tirar os fios do meu rosto, como se aquilo fosse algo a ser corrigido, um costume antigo. Batemos uma prosa meio corrida sobre a vida de ambas, sobre o que aconteceu durante esse tempo em que ficamos afastadas uma da outra. Ela já era avó, estava 56 anos, se aposentou, mas ainda continuava trabalhando. Estava morando em Assis agora, para ficar mais perto do filho e do neto.

Tia Nice morava em Palmital, mas, por conta de sua profissão de enfermeira, na época teve que se mudar para Maracai. Não foi só importante para mim, mas para minha mãe também. Foi ela quem incentivou minha mãe a terminar os estudos e a fazer o curso técnico de enfermagem. E foi exatamente o que minha mãe fez. Que logo em seguida, segui quase o mesmo caminho, mas em outra área da saúde .

OBS: Essas crônicas nas quais escrevo são totalmente baseadas nas minhas histórias, histórias com as quais me deparo no meu cotidiano atual, confrontando meu passado com o presente e estabelecendo sempre uma alusão entre ambos

Anna Gonçalves
Enviado por Anna Gonçalves em 27/11/2024
Reeditado em 28/11/2024
Código do texto: T8206660
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