Última corrida (Crônica 2)
Após sair do trabalho, já era por volta das 18h40, caminhava rumo à minha casa, quando, ao passar pela feirinha na esquina do meu serviço, fui atraída pelo cheiro familiar do espetinho "Sabor Caseiro". Que lugar maravilhoso! Conheci o casal que são os donos e que com o tempo se tornaram meus amigos.
Decidi parar ali. Sentei-me, ainda com os fones de ouvido pedi uma cerveja, enquanto bebia, me deixei envolver pela música que saía dos fones e pelo movimento da cidade ao meu redor. Todos pareciam seguir no mesmo compasso, indo para casa, cada um imerso nos próprios pensamentos, compromissos e rotinas.
A cerveja foi tomando conta de mim, e minha mente se entregou à introspecção, viajando entre pensamentos e filosofias que surgiam a todo momento. Quando dei por mim, já estava bem alegre e um tanto pouco vermelha nas bochechas, e sabia que era hora de ir embora. Chamei uma corrida e me deixei levar até minha casa.
Ao chegar, nem se quer tirei os sapatos antes de deitar na cama, apenas deitei e ali fiquei. O mundo começou a girar. Meu estômago começou a embrulhar, e não demorou muito até que eu corresse para o banheiro. Lá, comecei a vomitar, e, enquanto me desfazia de tudo que havia ingerido, algo mais veio à tona, naquele exato momento. Junto com o desconforto físico, brotaram memórias há muito tempo na qual eu havia esquecido e queria continuar esquecendo... Mas a vida não é muito legal nesses aspectos.
O som que eu fazia, entrecortado por retalhos de lembranças, me levou de volta a uma memória que eu jamais quis reviver.
Ainda em 2006, naquela casa pela qual eu era completamente apaixonada, meu pai apareceu, querendo conversar com minha mãe, tentar reatar. Minha mãe não queria mais reatar o relacionamento, mas ainda assim esperava que ele cumprisse o seu papel como pai, ajudando a me criar. O problema é que ele não facilitava em nada. Só estava disposto a ajudar se ela voltasse para ele, como se o "amor" fosse a condição para a responsabilidade, e não existia amor, e sim agressões e discussões. Naquela época, eu era muito nova para entender o que estava acontecendo, para processar tudo aquilo, mas havia uma única certeza que eu carregava comigo: separados, os dois eram muito melhores do que juntos.
Era noite, estava sentada dentro de casa, enquanto os dois discutia do lado de fora. E tudo o que eu conseguia ouvir do lado de fora eram os gritos da discussão. E então, o som da voz da minha mãe mudou, eu ouvi um choro que nunca presenciei, e meu coração começou acelerar. Corri até o quintal, onde a encontrei sozinha, com um galão verde de água sanitária nas mãos. Quando me aproximei, fiquei paralisada ao vê-la beber o líquido como se fosse água. Um desespero tomou conta de mim. Gritei para que ela parasse, desesperada, pedindo pelo amor de Deus que parasse. Acho que ela estava tão absorta, tão atordoada com o momento em que se encontrava, que por um breve instante ela me esqueceu. O medo dela me pegar de voltar da casa da minha avó e não conseguir me criar sozinha, e me criar apenas com o salário de balconista foi maior do que ela enfrentar a realidade.
Quando me viu, seus olhos se arregalaram e ela imediatamente parou. Mas o que aconteceu a seguir foi ainda mais devastador: ela começou a vomitar, incontrolavelmente, como se o que havia ingerido estivesse tentando se libertar de seu corpo. Eu fiquei ali, imóvel, sem saber o que fazer, o medo me dominando por completo. Desesperada, tomei a decisão de correr até a casa da minha tia, Tia Neta. Tia Neta era irmã da minha avó materna, única pessoa que minha mãe tinha naquela época. Ela morava a apenas três quadras de nossa casa, mas, ao chegar lá, a angústia era tanta que não sabia como me expressar e falar. Tudo o que consegui fazer era chorar, desesperadamente, foi então que, entre as lágrimas, consegui pedir socorro, dizendo que minha mãe estava tentando se matar. Imagina uma menina de 8 anos soltar essas palavras, foi um choque até pra mim, queria poder me abraçar neste momento.... A tia Neta me acolheu imediatamente, com uma calma que eu não conseguia compreender naquela hora, e pediu a um dos seus filhos que fosse correndo até nossa casa. Depois disso, minha memória se apaga, como se o tempo tivesse se estilhaçado naquele momento. Essa foi a primeira vez em que senti a dor do que poderia ser uma perda irreparável e o medo profundo do abandono....
Foi neste exato momento que deixei de ser criança.
04/10/2024
OBS: Essas crônicas nas quais escrevo são totalmente baseadas nas minhas histórias, histórias com as quais me deparo no meu cotidiano atual, confrontando meu passado com o presente e estabelecendo sempre uma alusão entre ambos