SOLIDARIEDADE TRICOLOR E ALGO MAIS...

Uma mensagem do dono do estacionamento encerrou minha farra dominical na Ilha de Maré: "Negão, o pneu do seu carro baixou todo, tá na jante..." Sabedor das limitações que a hérnia de disco me impõe e da muvuca que se instala na praia da Base Naval aos domingos, antecipei o retorno já pensando no perrengue de trocar pneu debaixo do sol e ouvindo "músicas" que fariam Dercy Gonçalves morrer de vergonha...

Contudo, como coisa ruim é prelúdio de coisa pior, o estepe estava tão murcho quanto ficou o meu ânimo de sair pela muvuca, procurando auxílio.

Após os palavrões de praxe, saí pela praia carregando o infeliz do pneu e praguejando em pensamento. A ideia era alcançar o tal do "Ponto do Uber" que, segundo me informaram, era o ponto máximo que os carros se aproximavam, dado que, tamanha a confusão que os paredões e seus aficionados provocam, os motoristas não entram na rua da praia.

Alcancei o tal "ponto de uber" todo suado, com cara de pouquíssimos amigos e ainda constatei que o miserável do pneu sujou completamente meu manto tricolor, novíssimo: "Uma raiva dentro da outra", diria meu Vô Jibóia.

Um rapaz que viera comigo no mesmo barco, me reconheceu e falou baianês impecável: "Porra, Baêa, tá barril, os uber tão tudo cancelânu, qual foi do pneu aí?"

Enquanto eu explicava meu infortúnio, um carro de aplicativo saindo da praia buzinou na outra pista e o motorista:

- Qual foi Baêa? deu merda aí, foi?

-Foi, rapaz, o pneu furado e o estepe murcho...

- Ôxi, bora! Tem uma borracharia aqui na Estrada da Base.

Me acomodei com meu trambolho e seguimos batendo papo sobre a confusão que se instala na praia aos fins de semana. A corrida foi curta, cerca de 4km da praia à borracharia, chegando nesta, mais um extrato do inusitado sempre me acompanha: A borracharia estava lá, aberta, mas o borracheiro "Foi comer água" segundo o morador de uma casa vizinha. Ante minha cara de absoluto desalento, o cara falou que se fosse somente para encher o pneu e verificar vazamento ele mesmo faria.

Auxiliado pelo motorista do uber, cujo nome eu não tive a presença de espírito (e a boa educação) de perguntar, o serviço foi rápido.

Aliviadíssimo, dado que havia deixado minha esposa no estacionamento ao lado da balbúrdia praiana, ofereci os únicos 20 reais que tinha na carteira (um mau hábito que adquiri em tempos de pix) à alma caridosa que substituiu o borracheiro pinguço.

- Pô, meu preto, muito obrigado, de verdade, segura aí pra tomar um réfri...

- Porra nenhuma, Baêa, isso aí é besteira, se adiante rapaz!

Não houve insistência que fizesse o cara aceitar a cédula.

Me acomodei novamente com o pneu, agora devidamente reparado e cheio, e retornamos à praia mais rápido ainda (dado que no contra fluxo do trânsito) falando mal de Rogério Ceni. Coisa de torcedor...

Destino alcançado eu, constrangido de pagar apenas R$ 20,00 a uma alma tão prestativa que me livrou de tamanho perrengue, falei:

- Meu preto, me fala seu pix pra eu transferir aqui uma cerveja pela força que você me deu - No trajeto, enquanto conversava com ele, eu já havia logado no banco.

- Não é nada não porra, tá tudo certo!

Tendo visto que no trajeto ele havia recusado várias chamadas no aplicativo, insisti, insisti muito, mas não teve jeito.

- Vá lá rapaz, a gente é Baêa porra! Depois a gente se bate na Fonte Nova e toma uma!!!

Fui tomado por um sentimento muito além da gratidão, foi algo mais luminoso, mais profundo. De repente, nem o som estridente e as letras bizarras dos paredões me incomodavam mais, era tudo mais harmonioso e feliz...

Minha esposa fala sempre que a camisa do Bahia abre portas ("camisa não manto!, eu a corrijo"), ela já me viu ganhar cerveja, vaga de estacionamento, vista grossa de blitz e amizades instantâneas.

A galera fala que acontece coisa demais comigo. gosto de pensar que sou apenas um observador mais atento.

Escrevi essa crônica para exaltar a solidariedade tricolor, mas ações dessas pessoas, estão para além de times de futebol. É bem verdade que o manto tricolor ajuda, mas esta empatia nos faz lembrar o povo que somos.

Nós, que um dia fomos definidos pelo Amado Jorge como "O povo mais doce do Brasil", somos hoje uma sociedade capaz de gerar monstros que matam um ser humano por ter feito com os dedos um sinal errado, na hora da foto.

Entretanto, no cerne, somos pessoas (Até os vices, que nós amamos detestar) como o motorista do aplicativo e o vizinho do borracheiro bebum.

É bom que não esqueçamos disso. A alma do povo é gentil. E doce...

Troquei o pneu rapidamente enquanto relatava os acontecimentos para minha boquiaberta esposa.

Nem senti a hérnia de disco, de repente estava com 20 anos, confirmando as teorias segundo as quais o amor e a felicidade têm efeito terapêutico.

No retorno eu estava num estado de espírito igual ao que se seguiu ao gol de Raudinei.

Passando pela borracharia, ainda sem borracheiro, exclamei mentalmente, mais orgulhoso do que nunca:

BORA BAHIA MINHA PORRA!!!!

Nairson Luiz Santos
Enviado por Nairson Luiz Santos em 14/10/2024
Reeditado em 15/10/2024
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