O Morto
Nunca esquecerei do dia em que o vi: o morto.
O homem morto jazia no chão, seus olhos, tais como duas diminutas esferas de vidro, refletiam o vazio.
“Ele pulou” – falou alguém – “o pobre coitado se matou.”
Nunca havia visto um morto antes e na minha mente infantil aquele acontecimento marcava uma fronteira em minha curta existência, pela primeira vez me dava conta da finitude da vida, não éramos eternos como pensava até então, um dia a vida acaba.
Assim deixei o morto, mas o morto não me deixou. Foi comigo em meus pensamentos, seus olhos de vidro se abriam sempre quando eu fechava os meus.
A imagem do homem estirado no chão tornou-se uma presença constante. Era como se, de alguma forma, aquele morto não estivesse completamente ausente. Ele me seguia, um espectro silencioso, manifestando-se nos momentos mais inesperados. Seus olhos vítreos pareciam me encarar através das sombras, através da escuridão dos meus próprios pensamentos.
Com o passar do tempo, tentei esquecê-lo, mas era impossível. Na adolescência, quando os amigos falavam sobre o futuro, sobre seus sonhos, eu me perguntava como tudo aquilo poderia ser tão distante para alguém que sabia, no fundo, que a vida era tão frágil. Aquela lembrança me fez sentir uma urgência, como se cada segundo estivesse à beira de se extinguir.
Os anos avançaram, e mesmo na vida adulta, o morto continuava a me acompanhar. Agora, no entanto, eu começava a compreendê-lo de uma forma diferente. Talvez ele não estivesse lá para me assustar, mas para me lembrar de algo essencial: a fragilidade que um dia me aterrorizou era também um convite para viver plenamente, para aproveitar o presente sem a ilusão da eternidade.
Comecei a perceber que o morto representava mais que o fim da vida. Ele representava o peso das escolhas que fazemos e das que não fazemos, o medo que nos impede de agir, de arriscar, de viver. Seus olhos vazios eram um reflexo do que poderia acontecer se eu deixasse o tempo passar sem realmente vivê-lo. Seria como estar morto em vida, vagando pela existência como uma sombra.
Certo dia, sentado em um banco de praça, enquanto o sol se punha no horizonte, fechei os olhos. A imagem do morto voltou, como sempre. Mas desta vez, algo era diferente. Ao abrir os olhos novamente, percebi que, pela primeira vez, seus olhos de vidro não me encaravam mais. Ele se foi.
Finalmente entendi: o morto não era apenas uma lembrança. Ele era um espelho de minhas próprias angústias, dos meus medos de perder o controle sobre a vida. Agora, ao aceitá-lo como parte de mim, eu o deixava para trás. Estava pronto para viver, para aceitar que a morte, assim como a vida, era apenas uma passagem.
E, então, pela primeira vez desde aquele dia, senti-me verdadeiramente vivo.