O recado

O recado

Para Zenaide, àquela que até os espíritos sabem que a amo.

Cáceres é uma cidade mística. Cada paralelepípedo das ruas históricas, as águas do Paraguai, as paredes dos casarões guardam acontecimentos que a ciência jamais poderia explicar. Ouço aqui e acolá dos antigos muitos causos que envolvem personagens já conhecidas do imaginário popular, como a noiva da ponte branca, o pé de garrafa, entre outras mais famosas, como o saci e o lobisomem.

Eis que tive a honra, ou foi só azar mesmo, de protagonizar mais uma dessas histórias de terror contadas pelos bugres mais antigos, que a gente pensa ser de mentirinha, só para assustar a criançada. Juro pelos fios brancos da minha barba que os fatos foram reais. Tenho, inclusive, quatro testemunhas e, graças às lentes do meu smartphone, uma fotografia que me ajuda a provar o que vivenciei junto a Zezê. Coitada dela.

Vai parecer um contexto de filme americano clichê, em que amigos passam por perrengues; não tão chocante como O Massacre da Serra Elétrica, mas igualmente sinistro, asseguro. Cinco amigos foram passear de carro nas férias de julho: eu, Zé, Zezê, Jacó e Vi. Passamos o dia todo na Fazenda Jacobina. Lá, almoçamos, tiramos fotos, dormimos na rede, tomamos banho naquele córrego gelado e descansamos da semana exaustiva.

Na volta para a cidade, decidimos mostrar para a Zezê outra fazenda histórica: a Facão. Antes de chegar lá, um forte odor tomou conta do carro. Várias suspeitas foram levantadas, afinal, o almoço foi reforçado; — quem peidou? — Ninguém confessava. Na verdade, a catinga que entrou pela ventilação do carro vinha de um animal morto, uma capivara, urubus a sobrevoavam.

Após 18 km, estacionamos. Estava tudo cercado, antigamente não era assim. Parece que não era para a gente entrar. Durante a construção da BR-070, o casarão principal da propriedade foi, infelizmente, demolido. Contudo, apesar de estarem em estado de abandono, a antiga escola e a imponente capelinha ainda permanecem no local. Eu e a Zê não nos intimidamos. Ela veio lá das Botas, menina bruta e sem frescura. Me ensinou a pular a cerca de arame farpado que quase me custou a camiseta, mas consegui.

Subimos os degraus da escadaria. Um, dois, e no terceiro, comecei a sentir a energia do lugar. Uma sensação de peso e mal-estar começou a tomar conta de mim, uma dorzinha estranha e irritante. Meus óculos embaçaram também, mas pensei ser a poeira que vinha da BR. Nessas horas, a gente quer arrumar desculpa para tudo. Na verdade, eu já tinha entendido que invadíamos o solo de seres que não estavam mais em nosso plano espiritual.

Minha ancestralidade indígena, herança da tata Maria, me garantia o discernimento. Minha coluna queria travar com o frio que eu sentia; não era a mesma dor do nervo ciático inflamado do Zé, mas foi o suficiente para entender o aviso. Eu não queria assustar a Zezê, mas vi que ela estava com uma cara diferente. Parecia ter saído de uma aula na turma do 7ºB: atordoada.

— Tá sentindo isso, amigo? — disse ela, perturbada.

— A angústia? Sim.

— Estranho, né? — Balbuciou.

— Sim, parece que não estamos sozinhos. — Respondi aflito.

Ao adentrarmos no grande salão do prédio da antiga escola, a temperatura caiu drasticamente, pelo menos, eu senti. A sensação era como se o ar estivesse sendo drenado, deixando-nos ofegantes e ansiosos. Parecia que o local tinha sido utilizado por sem-teto recentemente. Mas havia algo mais. Eu não disse a ela para não a assustar mais ainda. Mas eu tinha ouvido, ou acho que ouvi, vozes infantis. Parecia uma cantiga de ciranda. Seriam as crianças do passado? Ou apenas nossa imaginação pregando peças? Relutei no início, pensando ser sintomas de pareidolia auditiva e visual. Sei lá.

Deixei a Zezê caprichar no biquinho para a selfie que estava tirando em meio às ruínas. Certeza que ia mandar para o paquera. Enquanto ela posicionava o celular, vi pelo canto do olho, em um dos cômodos empoeirados, uma sombra baixota que se movia rapidamente. Mas, quando virei a cabeça, não havia nada. Respirei fundo, tentando me convencer de que era apenas a exaustão do trabalho. Eu ainda, de fato, não tinha me recuperado do mal comportamento do 9ºB na última aula. Ódio. A princípio, tentei ignorar, mas o sussurro de “Saiam!...” que ouvi, embora quase inaudível, me desconcertou.

Quando decidimos ir embora, na parede próxima à escadaria, nos surpreendemos com algo inimaginável. Tirando o fato de ela ter pisado em um graveto e quase ter me matado de susto, a atenção foi apenas para o que enxergamos redigido na parede a carvão: ZENAIDE E ADSM SE AMAM.

Isso mesmo, o nome dela perfeitamente, e, acho que em seguida é o meu, né? Ah, na hora do susto eu li Adson todinho também.

— É sério isso? — Exclamou Zezê, a voz cheia de incredulidade e medo.

— Estamos vendo com nossos olhos. Não pode ser! — Corroborei a indignação.

Ela pensou que fui eu, mas eu assegurei que não. Pensamos ser os outros, mas eles estavam deitados no carro e só acordaram com o nosso motim. Pois é, como pode o nome da Zezê ter sido escrito na parede em um lugar que ela nunca pisou os pés? E o meu junto, então? Fala sério... que coincidência mais doida.

Nada me tira da cabeça que foi um espírito de criança travessa que quis nos desconcertar. Pelo menos disse a verdade, pois amamos a nossa amizade.

Adson Luan Seba

19 de agosto de 2024.