Em algum lugar perto do fim

em algum lugar perto do fim

os bons inícios

não sabia por onde começar. acreditava que todo começo era sempre parte de uma história em andamento. que os sentidos haveriam de brotar ao longo do percurso e o tempo daria conta de todas as suas medidas.

por isso, começava sempre pelos meios. acreditava que assim chegaria ao princípio.

era como Amaria gostava de iniciar conversas (e por esse motivo talvez espantasse alguns dos seus interlocutores).

pensava que tão importante quanto viver, era, pelo menos uma vez na vida, morrer de amor. era bastante esperançosa pra quem carregava o futuro do pretérito na própria identidade.

pensava que, por causa da condição não linear da vida, havia de nascer um ser mais forte dessa perda; de mesma idade, entretanto com grande aptidão para tristes poemas e compreensão para novos fracassos. não havia, portanto, motivo algum para se temer a morte por amor.

era daí que vinham os bebês.

2. todas as mães morrem de amor.

para ela, existiam duas grandes certezas na vida. a primeira era de que absolutamente-todos-os-homens-cis-do-mundo, mais cedo ou mais tarde, iriam embora. como se a condição de uma existência descolada, não só alimentasse, mas fundamentasse a ideia de irrelevância de sua presença física. como se fossem apenas financiadores de um filme independente. às vezes (em regra) nem isso.

sua mãe dizia que a gravidez começava como uma azia, a queimar o peito. logo depois esquentava o ventre e, por fim, a ardência tomava conta do corpo inteiro.

Amaria temia a gravidez mais do que a própria morte e temia ser mãe mais do que engravidar. concluiu quase na fase adulta sua segunda certeza: todas as mães morrem de amor.

o esforço que origina uma vida requer o incêndio da matéria que a gera (não somente em ventre) porque o esforço que origina uma vida, requer o incêndio da matéria que a gere, afinal de contas, precisa-se de uma quantidade inestimável de calor para gerir mais de uma, simultaneamente.

mas um incêndio bonito e com potência para acender uma cidade inteira

pra apagar uma cidade inteira.

e essa é a única dor de amor que é permitida.

daí o histórico de fênix.

3. em busca dos silêncios confortáveis

era uma leitora assídua, embora não lesse uma quantidade significativa de livros por ano. é que Amaria, sempre que lia, parava entre uma página e outra para apreciar as frases. achava que dessa forma assimilaria melhor a essência das palavras. às vezes um único capítulo era capaz de preenchê-la por semanas.

fazia as coisas em seu próprio tempo, como se lhe fosse sobrar vida para todo e qualquer ofício. e assim, para todo e qualquer conhecimento, apresentava uma explicação lógica e aparentemente natural, apesar das extraordinárias coincidências do percurso.

na falta de marcador de páginas, marcava seus livros com uma carta perdida do jogo perfil. descobriu (com exceção do perca sua vez e volte 3 casas) 18 fatos sobre vida e obra do Tarantino e muito embora lhe incomodasse a violência desmedida em seus filmes, gostava de aprender trivialidades despretensiosamente. assim ficava fácil preencher os silêncios embaraçosos com bobagens aleatórias.

4. demorei um pouco pra falar de mim

no início, tudo era minha mãe. e eu não conseguia partir de um lugar que não fosse dela. não conseguia olhar para paredes secas ou frias. e só adormecia ouvindo canções de ninar, daquelas que carregam a mãe no peito e o pai no bolso.

em algum lugar entre o meio e o fim, mais pra perto do fim, pensei que, por ser assim, não amaria ser algum. não que faltasse desejo, mas demorei um pouco pra me descobrir em primeira pessoa e me desdobrar em outras. vivia num looping da extensão de outros corpos me alimentando por cordões umbilicais que em algum momento eram dilacerados.

visualizar trajetória romântica requer, além de paciência, uma noção de tempo um pouco mais tradicional do que a que tinha até o momento.

gostaria que alguém me amasse por mais tempo que meus pais se amaram, ou pelo menos de ser feliz por mais tempo que eles foram.

e por pavor dos prazos, acabava apostando na intensidade. sumia no ápice de toda relação e me deleitava com a impressão do prazer absoluto. eu me divertia com a ferida que meus sumiços causavam. uma saudade tão latente a ponto de machucar o estômago, ou melhor, um estômago tão embrulhado a ponto de causar uma úlcera. eu gostava da sensação de poder que as rupturas me permitiam sentir.

não havia fracasso se não houvesse fim.

entretanto, dessa forma, não havia história.

(Se eu soubesse)

5. Eu, Amaria

talvez eu só precisasse de uma gentileza. uma gentileza que me fizesse querer assumir o risco de levar um pé na bunda. alguém que sorrisse pra mim de uma forma não conquistadora, tampouco apaixonada, mas interessada, ainda que fosse no meu silêncio.

principalmente no meu silêncio.

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.

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eu era movida pela curiosidade, pelo contratempo, falha, incerteza. até pela desordem. eu implorava por algo um pouco mais afiado, como uma língua que incita verdades ácidas, ou envolvente como um olhar de quem pensa nos assuntos sobre os quais passaríamos a noite inteira falando.

precisava de alguém que quisesse ouvir um pouco mais que confissões de embriaguez. alguém que fosse capaz de profetizar minha covardia; que me fizesse querer ficar só pelo desafio ou medo do que eu poderia perder caso não insistisse. eu precisava da excitação de uma paixão intempestiva.

certamente teria amado por mais tempo se o amor me fosse apresentado de outra forma.

anacrônica por natureza, vi o início mais bonito no meio da vida. e me dei conta disso enquanto ela estava entre as minhas pernas, no intervalo de um show minguado numa festa de fim de ano.

o instante foi suspenso, como se o cenário do mundo literalmente levitasse, como se as paredes se elevassem e levassem junto a costura de realidade que havia sido construída pelas conexões de todos os anos da minha vida. como se minha existência tivesse sido uma completa mentira e eu estivesse no meio do nada, e não me refiro ao nada compreendido por um deserto de areia ou de gelo

no meio do meio do nada

no mundo

só existia ela é eu

e todo entendimento de paixão e de anseio e de tesão e de desejo dissolveram ao contrário, como se estivessem sob a força de uma gravidade invertida.

voltei

com a sensação de ter acabado de nascer.

provavelmente com a mesma vontade de chorar, mas com maior aptidão para tristes poemas e compreensão para novos fracassos.

certamente teria amado por mais tempo se o amor me fosse apresentado desta forma

anacrônica por natureza, fui pega de surpresa ao me entender em primeira pessoa

ao me ver espelhada

ao me dividir em duas.

tive certeza de que a amaria.

não ali,

naquele banheiro sujo de outros porres e de tanta outras primeiras vezes

nem no dia seguinte, no desconforto do pós-sexo (para o qual eu reservava uma porção significativa de trivialidades)

mas em algum momento

em algum lugar perto do fim.

Samantha Jones
Enviado por Samantha Jones em 10/07/2024
Código do texto: T8104182
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