NO GUME DOS DENTES

O cepo de facas estava ali, bem à vista, sobre o balcão modesto. Dentro havia um jogo de seis facas de tamanho diverso. Nenhuma servia. Precisava de algo maior e mais pesado. O facão de cortar mato serviria. Estava bem à mão, após ter sido usado no quintal. Ela continuava distraída e até mesmo meio sonhadora. Empunhou o cabo com firmeza e, lembrando das aulas de jiu jutsu, onde se fazia um movimento fluido em direção ao alvo, ergueu o facão e girou o corpo num único movimento, deixando a lâmina afiada se abater na nuca desprotegida com toda a força que tinha. Não foi suficiente para separar a cabeça do corpo. Por isso ergueu de novo a arma e bateu, bateu, bateu, até a pequena cozinha restar tingida de sangue escuro em todas as suas paredes e seu coração quase estourasse com a vontade de chorar.

A cabeça caiu ao chão com um baque duro e molhado. Foi esse som que o tirou do transe e lhe deu consciência de que, por fim, conseguira. A ameaça estava definitivamente morta, mas, e quantos como ela ainda existiriam? O que diria à polícia quando chegasse? Passaria o resto de seus dias preso num cubículo, com as lembranças e a sensação de que algo o espreitava no escuro?

Recordou-se da noite anterior.

O terreno tinha um murinho baixo e estava quase todo tomado pelo mato, sem nenhuma construção onde se esconder. A ideia era adentrar por uns três metros, para ficar invisível da rua, e esvaziar a bexiga com privacidade e calma. O som alto na casa da esquina anulava o barulho que fazia ao pisar em gravetos secos e folhas que estalavam. Chegou até uma trepadeira de melão-de-são-caetano, que escalava um arbusto de pingo d´ouro e decidiu que era um bom lugar. E seria realmente o melhor dos lugares, se não tivesse tido a infelicidade de espiar além das gavinhas da planta, para ver a cena que se desenrolava a cerca de cinco metros de si.

A princípio demorou a perceber que eram dois vultos, e não apenas algum tronco velho de contorno indefinido. Um deles estava de costas para si e o outro parecia desmaiado. Sem dúvida, se tratava de dois seres humanos. O que estava de costas alternava a posição do outro, ora levantando-o até bem perto de si, quando então dava um bote com a cabeça na direção do pescoço descoberto, ora afastando-o um pouco. Calejado como estava em filmes de terror, não teve dúvida em identificar um vampiro se alimentando.

A bexiga congelou e toda e qualquer necessidade de se aliviar foi substituída pela urgência de sair dali sem ser percebido e alcançar a segurança da rua iluminada na quadra seguinte. Uma estranha força o manteve preso no lugar por mais alguns segundo, durante os quais, para redobrar o horror da descoberta, identificou o vulto que sugava. Era sua filha adolescente. Não podia haver engano com o corte de cabelo mechado, todo azul nas pontas, e o perfil longo e reto do nariz, complementando o queixo um tanto saliente.

Pensou nas covinhas que se formavam naquele queixo quando a filha sorria e estremeceu. Não tinha certeza se estava em perigo ou não. Certamente tinha descoberto um segredo que devia permanecer oculto, e era impossível prever a reação que ela teria. Parabéns e vamos ter uma conversa séria estavam fora de questão. Mas certamente ela hesitaria antes de matar o próprio pai. Em tais esperanças se afundaram os sonhadores, disse para si mesmo, e começou a recuar devagarinho de volta para a rua.

O dilema seguinte era: voltar para casa ou dormir fora? Se voltasse, ficaria insone até ouvir a chave dela girar na fechadura e daí em diante, de olhos arregalados para a escuridão, passaria a noite esperando uma visita letal entrar no quarto. Mas não tinha para onde ir nem desculpa para dar. Afinal, a menina talvez nem desconfiasse de que, agora, por artes de um funesto acaso, ele sabia.

Resolveu voltar para casa. Pelo menos, tinha a garantia de que, em 18 anos de convívio, nunca fora atacado ou molestado de nenhuma forma pela criatura que, até então, chamara de meu bebê. E de fato estava em segurança, desde que mantivesse o bico fechado nas horas oportunas.

O filho mais velho já tinha casado e morava em outra cidade. A filha do meio estava na Capital, fazendo cursinho para disputar um vestibular muito concorrido. Estava sozinho para tomar decisões. Que coisa, conviver com alguém e não perceber que a criatura chupa sangue. E, contrariando o folclore sobre essas criaturas, refletia muito bem no espelho e podia sair ao sol. Menos mal, dá certeza de que não vira morcego e sai voando, pensou ele com certo humor.

Chegou em casa meia hora depois e tomou uma chuveirada. O rosto que viu no espelho do banheiro tinha um ar de perplexidade, de quem tenta reorganizar sua vida mental de acordo com novas diretrizes. Mesmo assim, sentia sono. Deitou-se e apagou a luz. Ouviu a porta abrir-se de novo: a filha tinha chegado. Acompanhou seu trajeto pelo som dos passos. Ela atravessou a cozinha e o corredor e entrou no próprio quarto. Sentou-se na cama que não dividia com ninguém mais, desde que sua esposa morrera, e nisso já se iam duas décadas. Ouviu o baque das botas biker batendo no chão e, como lembrança de última hora, a movimentação da cama quando ela levantou de novo para escovar os dentes.

Esse evento tão comum botou-lhe um arrepio de medo que levantou os pelos dos braços. Ela estava escovando os dentes: a escova passando para lá e para cá sobre o gume afiado, feito para romper a pele. Quem sabe a própria escova estava sendo cortada, nunca reparara nas escovas de dentes dos outros. Na manhã seguinte faria isso.

A tensão aumentou um pouco quando a porta do banheiro se abriu e ela passou de novo pelo corredor, de volta ao quarto. Após o que, fez-se silêncio na casa. Afundou num sono reparador, com sonhos confusos onde tentava se desvencilhar das gavinhas de diversas plantas. Quando acordou, a filha estava sentada na beirada da cama, observando-o.

Ainda que tivesse resolvido não falar nada do assunto, sua expressão facial e linguagem corporal o traíram. Sinalizava medo e vontade de fugir, uma certa repulsa e uma mente buscando freneticamente uma saída.

No entanto, enquanto se debatia com os sentimentos conflituosos, ela permaneceu imóvel. Imóvel e bela, com sua pele imaculada da juventude que nunca haveria de abandoná-la, uma efígie equivocada da eternidade contemplando um ser humano transitório e amedrontado. Não fez nenhum o gesto para tocá-lo. Esperava, apenas esperava, que o pai se acalmasse, o que ele acabou por fazer. Então ouviu daquela boca que conhecera a vida toda a confirmação: - Era eu mesma. Eu sou real. E fiz o que você acha que eu fiz.

Tudo foi enunciado calmamente, como se fosse uma simples declaração de que o jantar estava na mesa ou que tia Judite chegaria no sábado.

Contagiado por essa tranquilidade, irrompeu numa enxurrada de perguntas, esquecendo até o próprio medo ou, quem sabe, para abafar esse medo. Ela só soube dizer que fora atacada há seis meses (oh, como falhara em protegê-la) e que, em vez de morrer, transformara-se. Foi instruída pelo que seria seu mestre sobre adaptar-se e levar a vida sem despertar suspeitas – é perfeitamente possível eliminar um vampiro – e depois ficara à deriva. Pensara muitas vezes em contar para o pai, mas não suportaria ver a repulsa em seus olhos, o medo à sua volta. Sim, estava na plena posse de suas faculdades mentais e, embora não fosse mais humana, ainda conservava muitos traços passados. Por exemplo, só atacava os ditos homens maus e tomava o cuidado de matar adequadamente, para que não se transformassem. Sim, gostava de seu novo estado. Não precisava dormir, era praticamente incansável, tinha mais paciência, a menstruação parara de incomodar e todas as matérias do cursinho estavam sendo melhor absorvidas. – Mas ainda sou uma assassina, pai.

Ao sol da manhã que avançava pelo chão da cozinha, o pai fez um café e a filha pôs a mesa. Sentaram juntos em silêncio, como sempre faziam nas manhãs de domingo, ele olhando para dentro de sua caneca, ela para as mãos entrelaçadas sobre a toalha. Seu bebê agora era o topo da pirâmide dos predadores. Uma assassina, segundo ela mesmo. Mas, por Deus, como queria pegá-la no colo e confortá-la, como fazia quando ela era pequena e vinha chorando buscar consolo no pai.

Tomou sua decisão olhando para o perfil puro, enquanto a imagem da pequena menina sumia no fundo de suas retinas e outra, de uma fera dando o bote, se sobrepunha à garotinha, com uma violência primeva que dificilmente seria mantida sob controle futuramente.

Neste momento, ele decidiu.

Tangará da Serra, 29/01/2023.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 06/07/2024
Reeditado em 06/07/2024
Código do texto: T8101035
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.