Eu Vi
Eu vi nas madrugadas ensolaradas o orvalho deitar sobre a relva, como que adormecido há tempos. E a ágrua clara e pura saltitando as pedras que cobrem o leito do riacho. Vi os pássaros, os rouxinóis, colibrís, beija-flores, vi o sofreu, de galho em galho, este cantando o Hino Nacional, aquele beijando as flores, o resto em gorjeio sem rumo pelos campos, arbustos, pelos bosques.
Eu vi os crisântemos crescendo defronte as janelas, as samambaias pela encosta dos rios, pelas sombras das salas, das varandas, vi as flores na praça recepcionarem a Primavera, vi folhas caindo no outono, o repuxo da praça, a retreta no coreto, em noite de lua cheia.
E como vi, a molecada saltando nua na encosta, se deliciando no riacho, enquanto lá mais embaixo, as lavadeiras batendo as roupas ou estendendo na grama natural à beira do rio, improvisavam um singelo varal, enquanto por trás deste o bezerro procura o peito da mãe para se alimentar sem nenhum sonho ou ilusão.
Também vi, a timidez da mocinha saindo da missa do domingo, indo à frente com o irmãozinho, logo atrás seus pais, enquanto à sombra da árvore alguem media seus passos entre olhares, à espera de um sorriso franco de canto dos lábios.
Eu vi os redemoinhos vasculharem os largos, fazer cair as mangas, os cajús, as pitangas, levantar papel, ameaçar as saias cumpridas, os chapéus de palha, atravessar a linha do trem e desaparecer sem qualquer despedida.
Eu vi as serenatas, nas madrugadas escuras, o choro do bandolim, a preguiça da rebeca, o reluzir dos metais nas mãos dos violões, vi outrora as barraquinhas de agosto, as bandeirolas enfeitadas, o choro da criança nas mãos da parteira, anunciando para a mãe que era um lindo menino ou graciosa menina.
Como vi o carro de boi seguindo lentamente pela trilha, ou na dança sobre as pedras, cantando sempre, trazendo a lenha para as casas, enquanto no fogão subia a fumaça do café forte e quentinho.
Vi também as toadas nos acampamentos, ao céu aberto em plena noite, quando a tropa se arranchava depois de um dia de marcha, com o som da viola entrecortado com o barulho dos polaques dos burros que roçavam a relva quase a noite toda, indiferentes ao sacrifíco da continuação da viagem no dia seguinte.
Vi a mãe chorando com o negrinho morto nos braços, não se sabe se de febre amarela, ou sarampo, os olhos ainda entreabertos para o mundo que lhe fechara todas as portas e esperanças.
Vi o negro no tronco, recebendo chicotadas sem gritar, enquanto suas costas se coloriam de sangue vermelho e se confundia com o suor do sofrimento que escorria por todo o corpo.
Vi o padre dando confissão à beata, enquanto o sacristão no fundo da sacristia matava a curiosidade lendo a carta recém chegada da Diocese e roubava um pouco do vinho,tudo na desculpa de arrumar os panos e tirar a poeira dos móveis de carvalho.
Vi o dia amanhecendo, acordando as gentes, o movimento no mercado, os mascates, o jogo de argolinha, o peão zunindo, a tarde chegando com saudade da noite, até vir o sono de trevas, com os grilos cantando no mato, chateando a sinfonia de sapos e a indolência das galinhas que enrolando o pescoço encondiam o bico em suas penas. Eu vi as coisas do tempo, até virar passado ou grata recordação.