AMOR DE VÓ
Como muitas crianças crescidas nos anos 1980, fui criada pela minha avó materna. Meus pais precisavam trabalhar, não tinham escolha. Ela cuidava de mim e dos meus irmãos e primos. Ao todo dez crianças, com idades até dez anos.
Minha avó, Dona Alice, não era um poço de doçura. Com ascendência espanhola, era uma mulher bem brava, de pouca paciência. Com tanta criança correndo, gritando e brigando, não era pra menos. Fazia o melhor que podia com os poucos recursos que possuía, focando principalmente em nos alimentar e manter saudáveis.
Mesmo com toda braveza, eu a amava muito. Minha mãe precisou voltar ao trabalho quando eu tinha apenas um mês de vida (a CLT não estava tão consolidada em 1979, apesar de já existir há mais de trinta anos na época). Minha avó assumiu as funções maternas desde então. Como eu disse, era o básico. Não tinha tempo de brincadeira junto, nem contação de histórias, nem momentos de abraços e beijinhos. Era sobrevivência. Ainda assim, eu a amava muito.
Conforme fomos crescendo e ficando um pouco mais independentes e autônomos, a relação mudou um pouco. Havia bastante histórias, sobre suas vivências, tudo o que passou até ali, suas experiências de trabalho e de vida. Como muitos idosos, as histórias se repetiam com bastante frequência. Eu, que sempre gostei de ouvir histórias, escutava atentamente como se fosse a primeira vez, e até fazia cara de surpresa algumas vezes. Com o tempo, passamos a dividir experiências, quando eu contava dos meus problemas e ela dizia como tinha lidado com algo parecido no passado.
Ela gostava muito de ler. Tinha pouco estudo, conquistado com muito custo, graças a insistência de sua mãe, que brigou com o marido para que a filha tivesse acesso à educação. Imagino que se tivesse recebido instrução mais adequada e efetiva, teria sido uma excelente profissional na carreira que escolhesse. Cursou apenas o básico e trabalhou majoritariamente como doméstica e lavadeira para sustentar os cinco filhos pequenos, após ficar viúva com apenas trinta e dois anos. Do pouco estudo que recebeu, era perceptível sua grande inteligência. Lia bem e bastante, compreendia o que estava escrito e às vezes até compartilhava suas impressões. Tenho gravado na memória a imagem dela sentada na escrivaninha no seu quarto, lendo a Bíblia e anotando os versículos que mais chamavam sua atenção.
Conforme ela envelhecia, eu ficava com muito medo de perdê-la a qualquer momento. Sempre tive medo de perder minha avó e meus pais, mas com ela era mais intenso por ser mais velha, como se isso fosse assim tão definido. Em 2021 meu medo se concretizou. Apenas seis dias depois de perder meu pai, tivemos que nos despedir da minha avó, aos oitenta e sete anos. Diferente do que eu temia, fiquei em paz com essa despedida. Não na hora, obviamente. A saudade ainda é grande, mas é uma saudade que não dói, como se a jornada dela tivesse se completado.
Fiquei com o exemplo de mulher forte e resiliente, que não se submeteu às exigências da sociedade, não se conformou com sua situação e lutou para mudar a história de seus descendentes. Ela se orgulhava de que seus filhos haviam conquistado suas casas próprias, seus netos estavam conquistando ainda mais coisas, cursando faculdade e indo muito além do que ela sequer sonhou. Pode ver bisnetos e até um tataraneto. Com todas as lutas que passou, com todas as forças contrárias, foi uma mulher vitoriosa. Deixou um legado de força e coragem para todos nós que ficamos.