EVANDRO
"Eram tiros, muitos disparos, muitos gritos e muito choro....", Evandro tinha começado a colocar no papel. Descrevia, com o máximo de detalhes que poderia lembrar, as cenas que assistia diariamente durante a guerra que se desdobrava no seu país. Morava sozinho, num apartamento escuro e antigo. Os vizinhos comentavam o quão estranho seu lar era, pintado de preto (com o aval do síndico) e com os móveis empoeirados. Vivia todos os dias nestas condições, não recebia visitas de estranhos, apenas de sua tia Mara.
Mara comentava com Evandro o quão estranho ela achava o fato de ele viver em demasiada escuridão.
- Acho que você precisa sair um pouco e contratar alguém para limpar isso aqui.
- Isso aqui? - se levantou, indignado.
- Isso é uma espelunca! Não é casa! Eu tenho vergonha de dizer que você mora aqui.
- Nunca entendeu, né tia? Isso, que você chama, é arte. Tenho uma vida aqui.
- E está na hora de dar luz. Querido, você não sabe a situação que eu passo. Como digo para os outros que você é meu sobrinho? Tenho vergonha! Você é estranho, Evandro! Eu nunca menciono seu nome nas minhas conversas.
- Pouco me importa. Ninguém se importa na verdade, tia. Por isso tudo é escuro.
- E aí?
- Isso eu que te pergunto. Quer que eu pinte tudo de branco? Deixar minha casa como um consultório? Eu já estou louco, mas ficarei mais ao dormir e acordar me sentindo num manicômio.
- Você não é louco, Evandro. Só precisa sair daqui. Te prometo, que se você sair, você irá melhorar.
- Só saio daqui em caso de emergência. - colocou o ponto final na conversa, deixando a tia furiosa e fazendo com que ela deixasse o local.
Dormiu um pouco mais. Ao acordar, continuou a escrever.
"Uma mãe desesperada, de face morena, deixou seu bebê enrolado num pano em frente a uma loja de conveniências. O funcionário logo gritou para que pegassem o bebê, e uma mulher rapidamente se candidatou a levá-lo para casa.
- Sabe como se cuida de um bebê? - questionava a mulher para o funcionário, que negou. Pegou a criança em suas mãos e disse que cuidaria dela para sempre.
Nas avenidas, um povo desorganizado e amedrontado. Havia medo de dormir, medo de não acordar, de sair na rua e de ficar em casa. Bombas poderiam ser lançadas em qualquer lugar e a qualquer hora. Era viver sabendo que morreria em algum momento. Pais e mães deixaram testamentos, e os mais velhos deixaram suas casas prontas. Era muito estranho a sensação de morte iminente, e de ter consciência disso". Evandro foi interrompido pela campainha, mas ao atendê-la, viu que não havia ninguém. Talvez tenha sido coisa de sua cabeça.
Era homem das letras, formado e pós-graduado. Escrevia desde cedo, e se entupiu com a escrita após os vinte anos. Nunca mais parou, e todos se afastaram dele. Começou a preparar a casa para um evento não planejado anteriormente. Alguma coisa o mandava arrumar aquele apartamento.
Após lavar a última louça, sentou-se no chão molhado da cozinha, pegou o caderno e continuou:
"Levou o bebê para casa, cuidou dele com todo o amor e carinho". Foi interrompido novamente pela campainha. Eram dois homens, um de calça preta e o outro de calça marrom.
O de calça preta chamou a atenção. Pensava que já tinha visto anteriormente em algum comercial de TV.
- O senhor precisa se retirar. Estamos todos evacuando! Deixe a casa como está, pegue o que é importante e saia lá para baixo! Iremos para um container que está no caminhão do Rosa. Preste atenção! Caminhão do Rosa! Quero te encontrar vivo lá. Voa!
Rapidamente Evandro iniciou a busca aos seus documentos e outros objetos de valor. Colocou tudo numa bolsa e evacuou. Nas costas, a mochila. Na mão, o caderno e uma caneta. Pensava que aquela cena era digna de ser registrada. Logo, iniciou os escritos.
Entrou no container escrevendo, e detalhando todo o local. "Era um local apertado e escuro, e parecia que tinham mais doze pessoas dentro dele". As pessoas perguntavam o que estava fazendo, se estava anotando o nome do pessoal ou se era algum observador do governo. Chamado de Pero Vaz de Caminha, Evandro foi convidado a jogar fora o caderno.
Porém, foi defendido por alguns que diziam que seus registros eram importantes. Era um autor famoso, e o pessoal lamentava o estado em que ele se encontrava. Durante toda a viagem, documentou tudo! Desde o quão quente era lá dentro até quantas pessoas passaram mal. Ele contava tudo!
Contava inclusive, a sua história para o pessoal, que já a conhecia de cor. Documentou tudo em um escrito, chamado "Evandro". Finalizou escrevendo,
"A mãe criou a criança como tia, e ele sempre soube, mas ela pensou que não. Nunca gostou dela, e ela nunca o amou de verdade. Deixo aqui tudo registrado". E fechou o caderno. Contou, nesta história, quando sua tia Mara o encontrou na loja de conveniências e decidiu criá-lo. Decidiu, também, que era hora de encerrar o que tinha começado a escrever quando os homens chegaram em sua casa, "Evandro" era o nome. Ele não sabia a essa altura se escrevera um conto ou crônica, mas sabia que escrever uma história sobre a história era muito difícil — e ainda mais, escrevendo em terceira pessoa o tempo todo se referindo a si mesmo.
Deixo aqui tudo registrado.