Relinguagem
Durante um momento de ócio especulativo, estivemos a pensar: por que, às vezes, sentimos que não temos o pleno domínio do que escrevemos? Por que nossos textos acontecem como um presente? Ou seja, ninguém nos avisa com antecedência quando irá nos presentear: simplesmente presenteia. Surpresa! Assim nos ocorre um texto: vem sorrateiramente, começa a nascer e chega ao desfecho. Devemos aceitar, então, que acima de tudo e antes de tudo escrever, textuar, é um ato de inspiração. A racionalidade empregada nesse processo é apenas ferramenta cuja força motriz é o espírito. Pobre razão sem inspiração...
Já as línguas, que nos dão o entrelace têxtil-semântico, não somente nos conduzem através da realidade do viver, mas também nos permitem mergulhar no infinito plasma do ser: a linguagem, nas suas diversas expressões, é a humana caixa de Pandora do nosso universo cultural...
Articular símbolos e ideias que tocam um sem número de mentes e espíritos, fazendo-os comungar da verdade do sentir a vida, é um nobre atributo propriamente humano!
Ofício solitário? Não! Aquele que escreve jamais o faz sozinho, sua solidão é apenas aparente, pois sempre em sua companhia está a universalidade de todos os
interlocutores mediatos situados além da materialidade imediatamente observável...
Desse modo, chegamos a nos perguntar: quais as dimensões da arte? Qual é a dimensão do espírito humano? Grandeza essa que a criança curiosa e persistente chamada Ciência não alcança: menina teimosa tenta, insiste, novamente tenta, ressente-se e, no fim, não satisfeita, inconformada com sua pequenez, acaba em profunda inveja. Sim, invejando a
arte por sua liberdade e capacidade de atingir os céus que nenhum telescópio pode alcançar...
Assim, sentir-se pleno, gozar da liberdade absoluta que não se liga à carne, finita cela material, e conectar-se a mente universal através da linguagem ou daquela língua não falada do intuir: este é o delírio da arte, o canal entre a finitude do viver e a infinitude do ser.
A arte é, pois, uma forma de religião, religação. Por isso secularmente se faz abraçada aos cultos: oração e música, oração e literatura, pintura, teatro... mas, oração também é linguagem, portanto, também é arte...
Nesses termos, percebemos que Deus é artista! Vejamos, por exemplo, o delicado arranjo de fatores que fez explodir a vida na Terra e a notória capacidade humana de criar: sim, somos a imagem de Deus, porque criamos e criando apontamos para Deus. O criar é a essência divina do homem: a marca deixada pelo divino criador em sua humana criatura-criadora. Por isso podemos reencontrá-lo na arte e nela também nos encontramos e reencontramos. Através da arte, podemos nos reconhecer como semelhantes e percebemo-nos integrados ao universo que nos cerca...
Por isso, onde se cala a razão, fala a música, a dança, a poesia, fala o espírito. A arte é divina, porém humana: é a essência de Deus presente em nós.