Canção #01
Hoje fui até a cozinha, peguei três panos de mesa e fugi para o meu quarto. Lá, escondido das pessoas que não sonham, comecei a montar um mundo meu. Real, mas exclusivamente meu.
Do primeiro pano, arranquei um passaredo adornado de cores (cores que os artistas tentam, inutilmente, a natureza imitar). Os pássaros eram lindos. E diversos, quando libertos, voavam em meu quarto como se estivessem num infinito céu de quatro paredes.
Do segundo pano, realizei o desejo de um casal de amantes que paravam de súbito num instante de um beijo que viria a acontecer, mas foram impedidos pelo artista. Quando livres, fez-se o beijo e uma efusão de sentimentos tomou conta de tudo e todos ali presentes: eu, os pássaros, ele e ela.
Sobrava ainda um outro pano. Esse, recheado de guloseimas e frutas que davam saudades de minha mãe. Preferi não mexer, deixei-os imortalizados no tempo. Acho que era aquele o que ela mais gostava, surradinho, mas limpo e proveitoso.
O meu mundo parecia completo, a natureza impunha a sua beleza e transformação. E o amor reluzente espalhava emoção, felicidade e contentamento.
Mas ainda faltava alguma coisa. Retornei a cozinha, revirei a gaveta de panos e lá estava: “uma exuberante mata atlântica” estampada em um velho pano guardado. Era só minha. Enfiei por dentro de minha blusa (natureza valiosa demais para que alguém a visse), corri até o meu quarto e lá, a libertei. Todo o universo se fez verde, amarelo, azul, vermelho, branco, lilás... Um espectro possível e impossível de cores. O que era belo tornou-se exuberante. Todos os pássaros do mundo, todas as flores e árvores da vida e um casal com todo o amor que é possível aos homens.
Deitei, observando aquilo tudo. Era imagem demais para dois olhos somente. Com o pano de minha mãe, deitei. Certo de que onde ela estava agora, usufruía daquele limitado, mas infinito universo que eu havia criado. Estávamos felizes, e por um momento, unidos pela beleza de um mundo que compartilhávamos.