Come on, Camões: censura now?

Não sou lá de arroubos anglófonos. Sou lusófono convicto e praticante; mas não que isso me impeça de ir aqui e ali, ciscando em terreninhos de outras línguas. Mas o gancho de Camões muito me interessa e talvez faça sentido aqui, por razões um tanto soltas, mas que eu garanto a vocês que irá se ajuntar.

Ariano em uma de suas “aulas espetáculo” – ai de quem falasse show –, cantarolou uma melodia imaginosa que lhe mostraram, disse uma frase que muito recordo até hoje: “ao redor do buraco tudo é beira”.

E faz sentido. Mas veja, pensemos aqui: é beira porque não é o tal buraco. Começamos em física, mas partimos para filosofia num salto contido num instante, que por sua vez é uma aporia. Aporia: nome suficientemente vistoso para aquilo que não conseguirmos atingir juízo bom.

O que isso tem a ver? Tem a ver quando o diferente talvez revele o outro. E o outro, nosso diferente, fale bastante de nós. Parafraseando: ao redor deles, tudo somos nós.

E Camões entra nisso como? Camões talvez tenha sido maluco e brilhante suficientemente a ponto de criar uma epopeia portuguesa. Os Lusíadas é um poema épico de 1572, fracionado em dez cantos, que teve lá suas inspirações na Odisseia de Homero e na Eneida de Virgílio.

São 8816 versos decassílabos e 1102 estrofes de oito versos (oitavas), cujo arco narrativo passa pelas navegações ultramarinas do século XVI, com as grandes conquistas do povo português e a Viagem de Vasco da Gama às Índias.

Mas espere um momentinho: aqui está o pulo do gato. Nessa época era vigente um dos maiores períodos de censura, inclusive com o calor da inquisição cafungando os escritores. Como que Camões poderia ter se inspirado em Homero e Virgílio... se eles eram politeístas e Portugal vivia sob o Cristianismo?

Pois é... lembra que falei que Camões foi meio doido? Está aí o motivo. Há quem diga que o homem ainda era dado a bebericar biricuticos, tendo uma vida boêmia com os tais prazeres da carne.

Mas Camões foi além. Conseguiu ter seu livro com o épico Os Lusíadas autorizado pelo Rei e Igreja, ainda que citasse deuses e feras que estavam à margem do Cristianismo. Nem mesmo a inquisição; nem mesmo a censura da época barrou a epopeia de Camões.

Está achando anacrônico? Então um minutinho, bitte.

Vejo muitos celebrando uma espécie de belle époque à brasileira, com o fim da censura, em franca liberdade e afins. A coisa ao menos para este ignaro que vos fala, não parece ser muito assim. E não me parece ter sido coincidência vir a furo na sociedade, esse tempo estranho que pairou, senão como um sintoma reativo às avessas.

Aliás, pensar que o mal é fundado agora, é ingenuidade. É a maçã mordendo o homem, e olha, não existe Eva aqui. A censura nova – ou nova censura? – permeia o silêncio das entrelinhas, como sanções premiais. Check list para ter um palco e poder ser ouvido. Pouco a pouco, é-se exposto às mínguas de dialetos.

Não digo sobre falas odiosas. Não, definitivamente não. Isso ódio não é liberdade; é opressão. A questão é sobre a impossibilidade de discussão, com a sacralização de temas sem a abertura de diálogo. Não falar de temas incômodos não os retiram da sociedade; o problema persiste existindo, queiramos ou não.

Há quem defenda até mesmo que se passe a policiar obras de arte. Inquirir artistas quanto ao sentido da obra. Questionar formas líricas. Parece bonito num primeiro momento, mas sempre convém lembrar: a censura é ambidestra. Longe de ser tema fácil à irresponsabilidade de divagações de uma simples crônica, mas uma reflexão necessária. O problema é crônico.

Questione-se: a quem mais rendeu a censura velada ou não? Se não fosse a arte propagando a cultura e discutindo temas... onde será que as massas oprimidas estariam? Lendo Homero? Arrepiando-se com métricas de Hesíodo? Ah... hahahaha. Melhor rirmos.

E é assustador pensar que hoje, por exemplo, Philip Roth não conseguiria publicar um romance seu de sucesso. Tolstoi seria cancelado (já na época foi excomungado). Dostoiévski seria perseguido de modo muito pior. Faulkner talvez seria execrado às avessas, com alguns falando, quem sabe, que ele não teria competência para falar de certos assuntos.

Até hoje há quem queira cancelar Machado de Assis. Nem entro na discussão de pessoa x artista. Quiiii... isso nem perco tempo. Há gênios detestáveis, como Céline. Mas servir tudo isso de cheque em branco argumentativo para limitar a arte? Cogitar topar o prato frio da censura? Olhar tudo para trás de modo anacrônico?

Roth até hoje passa por ondas de cancelamento. Definir temas intocáveis na sociedade retiram a flexibilidade possível de transições geracionais e, sinceramente, sem flexibilidade; achar que tudo é óbvio; é negar o ser humano. Negar a realidade. Quão perfeito seria se a paz existisse, mas não existe. Quem dera não existisse a necessidade de almoçar com gente desagradável, mas por vezes temos, fazer o quê?

Brecht dizia que "a cadela do fascismo está sempre no cio", e foi taxado de fatalista, negativo. Mas vejo por outro lado. Vejo pela janelinha da ausência de óbvio. E é preciso uma baita golada de humildade para perceber que a ignorância existe; que a violência é uma opção que somente por uma conscientização pode ser recusada como viável.

Quando se nega alguma coisa, deixa-se de prevenir de seus efeitos, de se prevenir daquilo se tornar uma opção viável. Não à toa regimes totalitários mais exitosos começaram pelas beiradas, nos cantinhos. E não se engane, com um pouco de retórica, estética e propaganda, uma massa consumista cai rapidinho em qualquer papo utilitarista. E o antídoto? Talvez o primeiro colírio seja uma linguagem tangível da barbárie; talvez a introspecção reflexiva acusada pela arte.

Veja só o caso de Nelson Rodrigues; recebendo 40 rótulos para cancelamento e boicote. Chega a ser inacreditável. A discordância não é pretexto para ostracismo imperativo. Paciência. É do jogo as discordâncias, mas cerrar as pernas por ser o colchão curto? Sério? Partir para topar o discurso docinho da censura na arte por aí como opção de combate aos "maus"? Há quem não ouça Caetano por ser de "esquerda". Há quem não leia Nelson por achá-lo de direita etc etc etc. Ainda assim, escolhas. Mas cancelamento? Já se percebeu a violência simbólica que é um cancelamento dentro da arte?

Aliás, quando Caetano foi vaiado enfaticamente num festival em 1968, o seu defensor imediato? Nelson Rodrigues.

Por exemplo: não gosto de Michel Houellebecq. Mas faço questão de comprar seus livros. De ler até o que acho detestável em alguns momentos. Houellebecq para mim não é um grande escritor, como outros clássicos, mas é baita um provocador. Em 1700 e bolinha, estaria na bastilha. A França parece ter entendido a moral da história e hoje, ele não está preso. Aliás, é sucesso de vendas; e publicado. Seus temas espinhosos viram mesas de debate. Levam do livro para as ideias e das ideias para os livros.

Há dissonâncias que geram o equilíbrio necessário. Machado em novela ATUALÍSSIMA, chamada O alienista, já denunciava os pesares de um certo dogmático, fruto de um positivismo cego da época. "Verdade é que, se todos os gostos fossem iguais, o que seria do amarelo?"

Mas as redes doutrinam mal. Acostumam mal. Permitem brincar de autor da vida. Possível que hoje, Caim não matasse Abel. Iria bloqueá-lo das redes. "Você bloqueou Abel. Ele não poderá ver seu conteúdo." A vida, infelizmente não pode ser sublimada. Não sem sequelas.

E é nessas sequelas que se encontram os perigos do perfeito. O sorriso dos maus; a felicidade tóxica; as dietas milagrosas e os ricaços de carrões que transam o dia e vivem sorrindo. Uma grande caricatura. Talvez um enredo de Voltaire. Que, aliás, hoje também seria cancelado, assim como fora preso várias vezes em seu tempo.

Pensar sempre foi perigoso. Saber era para poucos; a arte era perseguida. Conhecimento é libertador frente aos mecanismos de dominação existentes. Quem hoje não se sente alguma vez como um inseto, igual a Gregor Samsa? Deslocado. Taxado de improdutivo. Reificado. A arte talvez seja a última barreira a que nos defenda da total rendição. Até hoje, optei não por cair atirando, mas lendo e escrevendo.

Eu sigo como uma outra frase do Nelson: eu não sou corajoso, sou um ex covarde. E no final, resta a pergunta que nem sei se Camões fez: a quem Antígona deverá obedecer?

Simon Lima
Enviado por Simon Lima em 30/08/2023
Código do texto: T7874110
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