A Redentora
Acordou cedo, foi ao banheiro e evacuou. Depois tomou um banho demorado, fez a barba e passou a loção favorita.
Sua esposa já havia preparado o café: duas torradas, um ovo frito e café preto.
Observou o ovo atentamente. Estava do jeito que gostava, a clara branquinha, sem bordas queimadas e a gema levemente mole. Lembrou-se de quantas vezes teve de gritar com a esposa para que aprendesse a fazer as coisas direito.
Foram anos de uma batalha encarnada. Lutava contra a burrice da esposa. E não desistiu, pois era um homem de batalhas.
Finalmente quando teve de deitar-lhe algumas bofetadas a mulher começou a dar sinais de aprendizado.
Hoje, fazia tudo com esmero, e havia aprendido a não responder mais com desculpas idiotas, mas apenas com “sim, senhor” ou “não, senhor”.
Mais uma guerra vencida.
Era um homem de bem, um homem de família. E não podia deixar que a esposa o envergonhasse.
Depois do café, vestiu a farda que já estava caprichosamente passada. Colocou o quepe e saiu.
Pensou em cumprimentar a esposa que lhe olhava de um canto, mas chegou a conclusão de que não poderia amolecer.
O motorista lhe esperava. Há muito não dirigia. Havia quem dirigisse por ele. Aliás, sua vida era uma eterna cadeia de ordens. E era ele quem as dava.
Em casa ou no quartel, sempre havia quem lhe obedecesse as ordens.
O cargo de general de quatro estrelas dava-lhe o direito de ter sob seu comando uma infinita lista de pessoas.
Mesmo assim, se sentia amargurado. Seu pai contava que nos anos da Redentora, um general podia ainda mais. Além da lista enorme de pessoas que obedeciam suas ordens, o pai contava que nas ruas as pessoas o temiam.
Podia parar qualquer pessoa na rua e dar-lhe revista. Se apetecesse, dava-lhe uns tapas, para tirar as ideias de subversão da cabeça. Naquele tempo, vagabundo não se criava.
Hoje, olhava pela janela do carro e via uma quantidade de gente vagabunda nas ruas.
Estudantes, camelôs, prostitutas, maconheiros, servidores civis, todos andavam tranquilamente pelas ruas. Vagabundeando para lá e para cá.
Não podia-se nem mesmo bater uma revista em alguém, que os jornais já o alcunhavam racista
Como se fosse sua a culpa por preto ter aparência suspeita.
No meio dos devaneios, chegou ao quartel. Abriram a cancela, bateram continência. Observou o tamanho da grama e o meio-fio recém pintado.
Entrou na sua sala, e despachou por uma meia hora. Gritou com um estafeta só para não perder o costume.
Às nove, seu ordenança lhe passou o telefone. Era o Frederico, seu advogado.
Conforme ia ouvindo, suas orelhas foram ficando vermelhas e a cara pálida. Uma veia saltou no pescoço.
Quando desligou, mandou o ordenança trancar a porta, não atenderia mais ninguém pela manhã.
Ligou a TV. Passava um programa onde uma mulher ensinava uma receita de forno, e não deixou de pensar que se mulher precisava de programa de TV para lhe ensinar a cozinhar, bem merecia era umas boas bofetadas.
Ficou mais nervoso. A hora se arrastava. Esperava o noticiário do meio-dia.
O advogado havia dito que seu nome, e de outros, figurava em uma investigação. E que haveria matéria na TV.
Ele a princípio duvidou, não tinha deixado nenhum rastro. Não poderiam descobrir nada.
Tudo que haviam feito era por amor à Pátria.
Acontece que houve eleições nacionais. E o candidato apoiado pelos militares perdeu para um sindicalista que havia ficado famoso por fazer greves.
Lembrava que o pai tinha lhe contado que nos anos da Redentora, esse comuna tinha passado um período na cadeia. Mas veio a tal anistia, e os vagabundos voltaram para as ruas.
Então, alguns generais tinham entrado em contato com o candidato derrotado. Não poderiam aceitar de maneira covarde uma fraude como aquelas. Tinham certeza de que o seu candidato havia vencido.
A ideia era mobilizar as forças, reunir os homens e depor os comunas. Iriam tomar as ruas da capital com seus blindados. E colocar o general de brigada no comando do país.
Ele mesmo já tinha na cabeça uma lista com nomes de pessoas que mereciam a cadeia. Todos subversivos.
Mas, algo saiu errado. Alguns do Alto Comando deram para trás. Houve quem falasse demais. A tal tecnologia. Telefones celulares eram um perigo.
Houve troca de mensagens por e-mail. Tudo devidamente apagado quando do fracasso do golpe.
Finalmente na TV, começou o noticiário.
Quase teve um enfarto. Seu nome era o primeiro na lista. Os federais haviam descoberto vários e-mails comprometedores.
Uma foto sua apareceu na tela. Ele derrubou o copo de água.
A noticia dava conta de que os e-mails apagados foram encontrados em uma tal lixeira que não havia sido esvaziada.
Como ele poderia imaginar que deveria esvaziar uma lixeira? Justo ele? Quando jogava fora algum papel, havia soldados para lhe esvaziar a lixeira. Não estava à altura de esvaziar uma lixeira, ora bolas.
Estavam cumprindo mandatos de prisão por todo o país.
Quando bateram na porta, ele deu um pulo assustado.
Eram os federais.
O ordenança abriu a porta e os federais entraram empurrando-lhe para o lado. A sala parecia vazia.
O ordenança olhou os federais sem acreditar.
- Não é possível, esteve aqui a manhã toda. Não saiu para nada.
Foi quando escutaram um gemido meio infantil. Os federais avançaram e avistaram sob a mesa do general, o próprio general, todo encolhido e chorando feito criança.
Foi preso. Hoje está aguardando julgamento em uma cela na capital.
E a esposa?
A esposa...
Dizem que está radiante, só esta semana deu duas festas de bossa-nova.
Posso confidenciar que ao encontrar com ela caminhando pela orla do lago pela manhã, me disse sorridente:
- Ah, você não imagina como esta prisão de meu marido está me sendo Redentora.