Reescrever livros, para não ferir as suscetibilidades dos hipersensíveis floquinhos-de-neve. Ou: Fim aos livros desagradáveis. Ou: Livros indefinidamente reescritos.
Não há muitos dias, assistimos a uma aventura do balacobaco, real, verídica, que parece saída de algum filme de quinta categoria: alguns javardos acharam por bem reescrever de alguns livros os trechos que entendem discriminatórios, preconceituosos, que ferem os sentimentos deste e daquele espécime de duas patas descendentes dos homens das cavernas. E assim fizeram (ou, mesmo pretendendo fazer, não o fizeram - não sei que fim tomou tal história) com livros de Roald Dahl, de Agatha Christie, de Monteiro Lobato, e com os de James Bond, o mais charmoso espião do universo, alter-ego de Sean Connery, o mais charmoso escocês - e também reescreveram, aproveito para lembrar, na versão em película, o teor de O Senhor dos Anéis. Ou tudo não passou de estratégia de marketing?! Há quem diga que tal se deu. Não sei. Para desovar os exemplares, que estavam, às moscas, cobertos de poeira, teias de aranhas a envolvê-los, nas prateleiras das livrarias, das edições que os "reescritores", após a morte dos escritores originais, pais das crianças, não haviam guilhotinado, lançaram mão de uma estratégia de vendas suicida. Seja qual for a explicação para tal fenômeno; tenha sido ele uma estratégia mercadológica, ou não, sabe-se que não poucos são os espíritos-de-porco que sonham, para atender suas humildes consciências de heróis da humanidade a criarem um outro mundo, o melhor, ver, em versões reescritas, os livros de escritores que, porque já bateram as botas, abotoaram o paletó, foram desta para a melhor, e estão a viver, mortos, de pés juntos, sete palmos abaixo da terra, ignoram o estrago que toleirões imbecis de primeira ordem estão a, estupidamente, lhes promover nas obras que legaram à posteridade - sejam elas ou de ouro, ou de ouropel, não importa: se o autor não autorizou ninguém a reescrevê-las, que tenham elas a cara, feia, ou bonita, que tenham, e que todos as respeitem, e que ninguém ouse submetê-las à cirúrgia plástica, à injeção de botox, de silicone, do que quer que seja.
Os espíritos-de-porco não se vexam de se alçarem à posição, elevada, e inalcançada pelo comum dos homens, de sumidades heróicas, protagonistas de poemas épicos que põem no chinelo a Ilíada, e de tais alturas arremessar, furibundos, e indignados, raios mortais contra o coração dos insignificantes mortais. Estão a melhorar, dizem eles, as obras dos escritores mortos, reescrevendo-as ao bel prazer, sempre a declararem, de viva voz, e em cores, que estão a fazer um bem inestimável à humanidade ao suprimir dos livros que submetem a escrutínio os trechos ofensivos. Digamos a verdade, o que nos vêm à cabeça: "Gente chata pra caramba! Chata-de-galocha! Mala-sem-alça sem rodinhas! Não toma Semancol, não?! Não tem desconfiômetro, não?! Que nos permita a nós, simples mortais, conhecermos as obras dos nossos antepassados, com todos os defeitos que elas possuem! E que os deixe viverem, em paz, na vida após a morte!"
Vejamos em que pé fica a brincadeira: hoje, uma pessoa - para efeito narrativo, batizemos a azêmola: Darci (assim ninguém saberá se é ou homem ou mulher) -, ao ler um certo livro - que nomeamos Aventuras Estapafúrdias e Desventuras Desarrazoadas de Juvenal de Aquitânia, o Estrupício - de um escritor (ao qual emprestamos o nome Amarildo Wanderlei Custódio Pires Salustiano) já morto - e ou enterrado, ou cremado - sente-se ferida(o) em seus sentimentos, em sua condição humana, sente-se ofendida(o) com os atributos que Amarildo emprestou a certo personagem, e constrangida(o) com certas cenas e com o vocabulário, reclama, e recorre a uma organização civil qualquer, e nela, para ver suas reivindicações atendidas, se socorre. E um auê se faz em torno do caso, e Darci, a chorar, deprimida(o), cabisbaixa(o), e a alegar que o livro lhe machuca os sentimentos, pede, melhor, exige, que nele se faça as devidas alterações - e as devidas alterações são as que ela(e) determina -, para assim se eliminar dele o que ele tem de prejudicial à sociedade. E atendem-lhe as demandas. Reescrevem "Aventuras Estapafúrdias e Desventuras Desarrazoadas de Juvenal de Aquitânia, o Estrupício", epicentro da catástrofe de grandes proporções. E nova edição, com as devidas alterações, de "Aventuras Estapafúrdias e Desventuras Desarrazoadas de Juvenal de Aquitânia, o Estrupício", é publicada. E Darci dá-se por satisfeita(o) com as alterações feitas. E transcorrem-se os anos. Em 2.028, uma certa pessoa - Darci, também esta - ao ler a nova edição, a com as alterações que a(o) outra(o) Darci solicitou, melhor, exigiu, de "Aventuras Estapafúrdias e Desventuras Desarrazoadas de Juvenal de Aquitânia, o Estrupício", incomoda-se ao ler um certo capítulo, e pede aos órgãos competentes que o capítulo em questão seja do livro suprimido, ou que tenha o vocabulário alterado para um que entende ela(e) apropriado - e atendem-lhe à demanda. E nova edição é publicada, com as devidas alterações. E Darci dá-se por satisfeita(o). E transcorrem-se os anos. Chegamos ao ano de 2.040: uma certa pessoa - Darci, a(o) terceira(o) desta história -, lê "Aventuras Estapafúrdias e Desventuras Desarrazoadas de Juvenal de Aquitânia, o Estrupício", em nova edição, publicada com as alterações que a(o)s outra(o)s Darcis exigiram, e tem pesadelos: a figura de uma certa personagem atormenta-lhe a consciência, e são-lhe perturbadoras as idéias esposadas por outra. E pede por alterações no livro. E atendem-lhe às exigências. E é publicada, com as devidas alterações, nova edição de "Aventuras Estapafúrdias e Desventuras Desarrazoadas de Juvenal de Aquitânia, o Estrupício". E Darci dá-se por sarisfeita(o). E transcorrem-se os anos. Chegamos a 2.060. E uma certa pessoa - Darci, a(o) quarta(o) desta história - lê "Aventuras Estapafúrdias e Desventuras Desarrazoadas de Juvenal de Aquitânia, o Estrupício", em edição melhorada com as alterações que a(o)s outra(o)s três Darcis exigiram, e cai em prantos, e recorre aos representantes da sociedade civil, que atendem-lhe as exigências: alterar do livro o vocabulário, que atormenta Darci, e suprimir o personagem tal, e adicionar uma cena, que é do gosto dela, e modificar o tipo físico de certa personagem, e substituir o narrador, antipático, por um simpático. E assim é feito. É publicada nova edição, com as alterações apropriadas, de "Aventuras Estapafúrdias e Desventuras Desarrazoadas de Juvenal de Aquitânia, o Estrupício". E Darci dá-se por satisfeita(o). E transcorrem-se os anos. E estamos a 2.077. A(o)s dua(oi)s primeira(o)s Darcis já partiram desta para a melhor. E uma pessoa, Darci - a(o) quinta(o) - lê, de "Aventuras Estapafúrdias e Desventuras Desarrazoadas de Juvenal de Aquitânia, o Estrupício", a edição melhorada, e tem um piripaque, e vai acamar-se num quarto de hospital: alvejaram-lhe, mortalmente, o peito, o teor de uma cena, as palavras ditas por certa personagem, a descrição de um prato de lentilhas e a presença de um porco dentro de um chiqueiro. E exige Darci mudanças no livro. E atendem-lhe as demandas. E chegamos ao novo século: 2.108. Darci - a(o) sexta(o), se não perdi a conta - lê o livro de Amarildo Wanderlei Custódio Pires Salustiano, e vai ter à UTI... E é publicada nova edição, melhorada, de "Aventuras Estapafúrdias e Desventuras Desarrazoadas de Juvenal de Aquitânia, o Estrupício"... E chegamos a 2.133... E Darci... E chegamos a 2.199. Uma certa pessoa, Darci... E em 2.999... E no ano 3.333, todos os exemplares de "Aventuras Estapafúrdias e Desventuras Desarrazoadas de Juvenal de Aquitânia, o Estrupício", cuja substância já não guarda nenhuma identidade com a primeira edição, publicada ainda em vida de Amarildo Wanderlei Custódio Pires Salustiano, desaparecem nas chamas de uma fogueira insaciável. E o nome de Amarildo Wanderlei Custódio Pires Salustiano é apagado de todos os livros de história.