O Herói da Democracia.
Há um pouco mais de uma semana, num sábado, na casa do Carlos, a comemorar o trigésimo aniversário de casamento dos pais dele, os amáveis senhores Paulo Renato e Maria Amélia, conversávamos, animadamente, à mesa, eu, minha esposa, e meu irmão caçula, e o Carlos, a Maria Júlia, a Luiza, até que à mesa chegou o intratável, intragável João, que insiste em se opôr às minhas opiniões políticas, históricas, sociológicas, enfim, a tudo o que eu digo. Reconheço: é ele homem de boa formação literária e de exemplar bagagem intelectual. Não divergisse, e tão irritantemente, de mim, obrigando-me a reconsiderar as minhas crenças políticas e ideológicas, seria ele uma companhia adorável. Falei-lhe de Democracia e que dela sou um defensor apaixonado. E ele a se me contrapôr!
Na manhã do dia seguinte, na casa do Marco Aurélio, amigo meu há duas décadas, entretínhamo-nos, durante um bom dedo de prosa, eu, o Marco Aurélio, a Márcia e a Elisângela, até que chegou aquele tal de Cauã, que eu tive o desprazer de conhecer. Falei de políticas de segurança, e ele me contestou, com argumentos irrefutáveis, constrangendo-me; e falei da política econômica do governo, e ele, revelando-se um profundo conhecedor da teoria econômica, citando Quesnay, Ricardo, Menger, Schumpeter, revelou-me, e aos meus amigos, a inconsistência de meus argumentos. Falei de democracia, e apresentei-me como um fiel defensor de um regime democrático no Brasil, e ele, divergindo, frontalmente, dos meus comentários, associou a idéia de democracia à prática democrática, insistindo em destacar as minhas falácias, e ele o fez, com educação exemplar, numa demonstração impecavelmente bem sedimentada de suas razões, concretadas numa exposição lógica isenta de flancos desguarnecidos. Usasse ele de um vocabulário deselegante, expressões incivis, raciocínio sem pé nem cabeça, eu poderia demoli-lo sem esforço.
Há três dias, na pizzaria, encontramo-nos eu e o indesejado Vinicius, aquele tipinho presunçoso, que tem o rei na barriga. Tão logo me saudou, evocou uma conversa nossa, de há um mês, e falou-me de suas reflexões acerca de um dos elementos teóricos, contestando-me, do qual eu lançara mão para sustentar uma observação que eu fazia, então, dos costumes religiosos de nosso povo e da relação deles com a religiosidade dos portugueses. Falei-lhe de meu amor pela Democracia; ele, ignorando as minhas palavras, concentrou-se nas suas observações, pontuando os meus equivocos, dissecando os argumentos que há um mês eu lhe exibira acerca do assunto que agora ele rememorava, e exibindo-me as vísceras do cadáver insepulto que dos meus argumentos restou.
Hoje cedo, não bem havia eu acordado de uma longa noite de sono, visitam-me e à minha esposa a Jennifer, mulher antipática, que eu não aturo, e o marido dela. Durante o café-da-manhã, que, hospitaleiros, eu e minha esposa oferecêramos ao casal que se convidou para entrar em nossa casa, falamos da Idade Média, e, sem que me surpreendesse, a tal da Jennifer não validou nenhum dos meus pareceres a respeito de tal período da História. Ocupou-se a mulher, e deliciosamente, e gostosamente, com a sua atividade predileta: expôr a sua farta erudição sobre a Idade Média, ciente de que não posso emulá-la, para reduzir à pó as minhas opiniões. Falei-lhe de democracia, e disse-lhe que sou um legítimo defensor da liberdade democrática; e ela sorriu, desdenhosa.
Ora, eu, um homem de princípios democráticos, mereço respeito!
Numa democracia, temos o direito de expôr os nossos pensamentos, livremente, sejam eles quais forem.
Eu, que sei o que a Democracia é, eu, que sei o que é um país democrático, eu, que sou um homem democrático, não posso ser contrariado por ninguém, pois, se sou um homem que ama, e defende, e quer, a Democracia, então quem se me opõe é, obviamente - um truismo -, antidemocrático.
Viveremos numa democracia plena se se suprimir à vida pública os homens antidemocráticos, tarefa que temos de executar democraticamente, e não por meios antidemocráticos.
Os Joões, os Cauãs, os Vinicius, as Jennifers estão a destruir a Democracia.
Têm de ser da sociedade expulsos! Que sejam suprimidos à vida, por amor à Democracia!
Arregaço, pois, eu, um herói da Democracia, as mangas. E mãos à obra.
Vivas à Democracia.