O ÚLTIMO NATAL
Mal acordou, foi à janela ver o tempo. Viu que ainda era noite. Ela acordava cada dia mais cedo, e ainda não havia amanhecido. Do oitavo andar viu as luzinhas que enfeitavam os prédios da rua e percebeu o Natal à vista. A cada ano ele vinha chegando mais cedo e naquele momento já estava ali.
Podia ser que ainda fosse tarde da noite, pois quando estava só, constantemente acabava trocando o dia pela noite. Era o seu hábito trabalhar quando tinha vontade, comer quado tinha fome e dormir quando tinha sono.
Amava sua solidão temporária. O marido estava no trabalho da fazenda, filhos e netos nos seus afazeres. Seu tempo era pouco para fazer o que gostava: pintar e escrever. Naquela fase da vida, mais escrever que pintar.
Bem verdade que naqueles dias tinha andado no ócio, vagando pela casa, cortinas fechadas, num lusco-fusco, penumbra de aconchego ideal. Desde que a empregada cismou de não ir trabalhar e a faxineira desaparecera, ela andava assim, fazia o que queria na hora que tinha vontade.
De férias da vida, sabia que se abrisse o computador, digitaria um novo romance de modo irretocável, sem a necessidade de consultar anotações prévias.
Se fosse ao ateliê, com suas tintas arrumadas no capricho, era certo que uma nova tela em pouco tempo estaria pronta.
Percebeu que as luzes da rua a deixavam um pouco ansiosa. Logo ela, bem-humorada, alegre, aquela que nada reivindicava, que tinha tudo de que precisava para ser feliz. Logo entendeu que a proximidade do Natal era que a deixava daquela maneria. Concluiu que gostaria de mais uma vez, ser a dona da festa, como tinha sido por tantos anos. Não se lembrava de como sua festa havia passado para as casas dos filhos. Ela e o marido como convidados, só levando os presentes.
Queria loucamente a ceia de volta naquele ano. A árvore iluminada, o envolvimento com a comida, a bebida, os enfeites, a expectativa de fazer o melhor, como sabia tão bem. Ter todos eles ali junto dela, grandes e pequenos, ouvindo a barulhada da festa, o tinir dos copos, o brilho da prata, o aroma dos assados. A casa outra vez cheia de vida e alegria.
Já que a festa seria ali, era preciso, portanto, começar a se organizar. Tinha a cabeça ótima e não havia necessidade de listas.
Primeiro, mandaria recado à empregada e à copeira.Que viessem, as férias haviam acabado.
Chamaria a banqueteira de tantos anos e tantas comemorações para que trouxesse seus últimos cardápios. Era preciso buscar a toalha. A de renda de Veneza ou a francesa dourada? Separar e engomar os guardanapos de linho, tirar a baixela do armário, o faqueiro das gavetas, dar brilho em tudo e escolher cristais e a porcelana mais delicada. Era preciso também tirar os enfeites preciosos das arcas e arrumar um Natal inesquecível.
Na adega, pegaria o champanhe de ótima safra. Naquele ano crianças de dez anos iam poder ter dois dedos da bebida, como fora com seus filhos. Para aprenderem a brindar. Pediria os patês e antepastos na mercearia dos portugueses, aquela que tinha de tudo, e que sempre os serviu com presteza.
Examinaria os uniformes dos funcionários e verificaria as luvas dos garçons para que estivessem imaculadas.
Precisava chamar a modista e deixar a seu cargo o vestido para aquela noite. Saber dela se havia uma tendência de cor para as festas daquele fim de ano. Pedir à filha mais velha que fosse ao cofre do banco e trouxesse uma única joia, seu anel, o grande, só ele.
Não queria competir com as filhas e as noras com suas joias modernas. Saber quem era o cabeleireiro da vez e fazer um corte arrojado. Era preciso estar na sua melhor forma. Lembrou-se de que num dos últimos almoços de família a netinha mais nova olhou bem para ela e perguntou:
– Vovó, quantos anos você tem?
Enquanto pensava na resposta, lembrou-se de alguma coisa referente aos traumáticos 65 anos e ficou sem saber o que responder. Na verdade, vaidosíssima, trapaceou tanto com datas que acabou não sabendo sua verdadeira idade. Ia ser preciso olhar o documento para saber. A neta, chamada por alguma outra criança, também não havia esperado a resposta. Talvez sua idade fosse mesmo, ainda, os tais 65 anos.
Era provável que não avisasse o marido sobre a festa. Será uma surpresa maravilhosa para ele. Imagine chegar na véspera e saber que sua casa teria um daqueles antigos e verdadeiros natais.
Devia pegar os jornais e olhar as peças em cartaz para conversar com as filhas e noras de modo atualizado. Elas eram bem informadas, articuladas. Era preciso saber de quem era a tradução do Ricardo III que estavam encenando. Seria boa como a sua própria tradução? Na verdade não ia precisar saber nada daquilo, nem mesmo treinar uma conversa, como se dizia, descolada.
Com o marido presente, tudo ia fluir todo o tempo. Com sua bondade e seu encanto ele iluminava um estádio inteiro.
Ela se via na festa, procurando-o com o olhar. Iria vê-lo falando dos últimos lances do esporte com os netos adolescentes, elogiando com sinceridade a elegância da filha menor.
No momento seguinte, já cercado pelas crianças evolvidas com suas palavras. Ele contava que na fazenda uma onça gigantesca atacara três bezerros numa única noite. Ouviria sobre a cobra coral na cama da filhinha do administrador. Seu olhar cruzaria com o dele que, com carinho, passava a ela que estava adorando sua última invenção: a de ter todos ali naquele Natal de sonho.
Visualizava tudo e antecipava que a festa já estava acontecendo. Ia chegar a hora dos presentes e eles todos iriam vibrar com os envelopes contendo os dólares, pois o tempo não fora suficiente para tantas escolhas.
Com o pensamento na festa, ouviu surpresa o barulho de alguém que abriu a porta da frente com chave própria. Nada tinha ali para ladrões. Dinheiro, joias, dólares, tudo estava no cofre do banco.
Dois senhores de terno, com pastas nas mãos, entraram, seguidos de um casal jovem.
O apartamento estava à venda, fechado há dois anos, dizem eles.
Ela se levantou e disse que morava ali. Era dona legítima. Não queria vender nada. Sua ceia de Natal estava em planejamento. Era tudo um grande engano. Que voltassem depois.
Mas ninguém parecia vê-la, muito menos ouvi-la. Ela é quem ouvia claramente o que era dito pelos visitantes: –
Quem morou aqui foi a famosa escritora Stella Saes. Ela morreu aos 65 anos. Era filha única e solteira. Não deixou herdeiros nem descendentes, e seu apartamento pode, sim, ser vendido com todas as coisas que há nele. Por testamento tudo será destinado a uma Casa de Crianças Excepcionais. A Editora responsável por seus livros pediu para ver se haveria contos ou romances inéditos, mas a ordem de que tudo ficasse a critério do comprador. Há ainda muitos outros imóveis, mas aqui é que ela de fato morava e escrevia, quando estava no Brasil.
Stella ouvia tudo aquilo e se lembrava da sua derrocada irremediável aos 65 anos, nítida e detalhada, como costumava escrever suas cenas. Sabia que seu último conto, interrompido, não chegara ao fim, e dele não ficaram sequer os originais.
Ouvia a moça loira dizer que queria o apartamento com todas as coisas que nele houvesse. Queria inclusive o retrato da artista quando jovem. Ia começar sua tese de doutorado e acabava de escolher o tema.