O Falso Rei
O táxi estava cheio e o calor do meio-dia fazia-me pensar que a roupa jamais estaria decente para entrar na entrevista de emprego. O emprego de renda, o emprego da faculdade, da comida, o emprego de ajuda para a mãe e para os canucos de casa.
Todo o trânsito parou e ouvíamos sirenes ao fundo da estrada. Motos gigantes com homens sem cara a fazerem zig-zag para nos assustar, para nos afastar da rua, da nossa rua. Era, como sempre que a vida parava, a comitiva do presidente da república. Da república dele, só dele.
Pensei que não devia ser assim e ri-me baixinho com uma memória de um poema:
"Hoje é o meu apogeu, o ponto mais alto do meu poder.
Hoje, saberei se sou mais poderoso, ou meramente presunçoso.
Esta é a hora marcada.
Hoje, levarei o poder da minha alma ao limite.
É o momento de Sansão que, estando cego, meditou junto aos pilares do Templo de Dagom."
Ali estava eu, preso à democracia mentirosa dos tiranos, eu e todos, olhando uns para os outros com a pergunta no rosto: Foi para isto que votamos? O sol não escondia o seu poder, o suor era amargo, salgado e o som, sim o som, era alto e desconfortável. Assustava-me com alguns silêncios e alguém perguntava: “E agora? Já foram embora?”
O poema seguiu na minha mente:
"Deixarei o meu corpo e envolverei o meu espírito em penas.
Preciso de voar.
Deixarei o carrossel de planetas e estrelas e alcançarei as fronteiras da Natureza e da Criação.
Tenho agora duas asas e servirão!
Vou abri-las de Oeste a Leste.
Atacarei o passado com uma e o futuro com outra.
Seguirei os clarões do sentimento até Ti
E perscrutarei Teus sentimentos.
Tu, de quem dizem que sente muito no céu."
Aquele tempo parado no táxi deixou-me ver o lixo amontoado, as crianças imundas de cabelo descolorado e barriga disforme, velhos esfarrapados e famintos. Ao fundo as sirenes dos carros de luxo e militares fortes, bem alimentados e hidratados com armamento para uma guerra ou mais, já ali, ao pé do nosso táxi carregado de ameaças desempregadas, ameaças doentes, ameaças de gente longe de casa, gente sem casa, ameaças…
O poema seguia como um alento:
"Estou aqui. Cheguei!
Testemunha o meu poder.
Agora o meu espírito uniu-se ao meu país.
O meu corpo engoliu a sua alma.
Eu e o meu país somos um.
O meu nome é Milhões, porque amo e sofro por milhões.
Contemplo o meu país como um pai contempla a sepultura do filho.
Sinto o sofrimento da minha nação como uma mãe sofre com a dor do filho no útero.
Eu sofro, sinto raiva e TU, sábio e alegre, governador eterno, o juíz eterno
E dizem que nunca te enganas…"
Que medo é esse que eles têm? Que miséria tão grande é a nossa que os ameaça tanto?
O que é que tanto receiam? A nossa apatia?
Fala, ou atacarei a tua Natureza,
Se não a transformar em pó, abalarei nações inteiras no seu âmago
A minha voz perfurará cada camada da criação.
Senti que o táxi, os passageiros, as pessoas na rua, a cidade e o mundo voltaram a andar e as sirenes já não se ouviam, o medo diminuiu, o emprego perdido por motivos de relógio, como se alguém se importasse, a barriga mais uma vez vazia, o coração outra vez partido por nada, nada mesmo… outra vez.
Eu disse em voz alta:
"Esta voz viajará de geração em geração
E gritará que não és o PAI
Gritará que és, somente, um falso rei."
Amanhã vou entrar noutro táxi e pensar outra vez neste poema de Mickiewicz, homem de valor lá da Polónia, que sofreu dos meus, nossos males e escreveu poemas para salvar o mundo. Também ele teve de ouvir sirenes e a voz do silêncio obrigado por um voto.
Adam Mickiewicz confessou que lhe doíam os dedos de tanto escrever sobre liberdade e que lhe doíam os olhos de chorar por tudo o que podia ter feito e não fez durante a sua juventude.
Victor Amorim Guerra