AS CIDADES MULHERES
...Bem que eu poderia ter chorado o meu primeiro choro em tantos outros: nos de Geórgia, de Gioconda, nos de Armênia...
AS CIDADES MULHERES
Inusitado, acredito, é como se poderia classificar o livro de Ítalo Calvino intitulado “As Cidades Invisíveis”, principalmente quando o autor com magnífica habilidade feminiza suas cidades, concedendo-lhes nomes femininos. São as suas cidades mulheres.
Inusitado por nos arremessar aos meandros de muitas lembranças de algumas cidades / mulheres que conhecemos ao longo de nossas vidas.
Conheci umas poucas. Vi algumas que já surgiram belíssimas cheias de encantos mil nos seus contornos exuberantes, como se tivessem sido agraciadas exageradamente pela mãe Natureza em momento supremo de extremo esplendor.
Como a grande maioria das mulheres, as cidades também parecem persuasivas. Desnudam-se ante nossos olhos e matreiramente aguçam nossa imaginação, como se quisessem ser ovacionadas com o pieguismo exagerado de versos galanteadores. Inebriam-nos, sabem que os poetas tornam-se tolos, não resistem a tantos devaneios.
Conheci outras não tão vaidosas com o glamour estonteante do esnobismo, mas mesmo recatadas em suas singularidades, sabiam fazer-se belas, também. Outras tímidas, retraídas, como quem se debruça na moldura do tempo e avalia cautelosamente o peso das conseqüências que o deslumbre do estrelato traz consigo.
Foi nos braços de uma dessas mulheres que há muito acordei com o sopro da vida. Bem que poderia ter chorado o meu primeiro choro em tantos outros: nos de Geórgia, de Gioconda, nos de Armênia... Mas, com certeza, não teria sido assolado com o mesmo fascínio de quando me vi acalentado por uma morena faceira, “de cabelos longos e negros, muito mais negros do que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira”, como magnificamente bem a comparou um de seus filhos mais ilustres.
Foi nos braços de Iracema, a virgem dos lábios de mel, onde me vi menino arredio nas ruas e vielas de minha infância. Menino afoito, de calças curtas, tão curtas quanto a minha visão em pressentir que logo eu cresceria e haveria de sonhar alto, ganhar novos ares, buscar outras cidades / mulheres, voar... E voei..., talvez não com a precisão de um Fernão Capelo Gaivota, mas ousei alguns voos audaciosos.
Deixei com ela ou nela, muito de mim: marcas da infância, peripécias, venturas, desventuras, sonhos que não puderam ser. Trouxe dela o orgulho de saber que nesses ares respirei o primeiro sopro que me encheu os pulmões.
Hoje ela, minha Fortaleza, é mais uma dentre tantas outras vaidosas. Ousou desnudar-se para o mundo, galgar os degraus da fama. Tornou-se musa inspiradora, cantarolada em versos e prosas por seus poetas e tantos outros além de suas fronteiras.
Eu cresci; ela deixou para trás os trejeitos de menina brejeira e hoje, faceira, virou a cidade de belezas e encantos.
Por obra dos vaivens da vida, fui fisgado por outros braços que me parecem agora os derradeiros das minhas caminhadas. Certamente, desde há muito estavam a me esperar, para que fosse finalmente sacramentado o encontro pontual, na hora e no tempo exatos planejado por meu destino. Rendi-me ao aconchego sutil de uma menina quase mulher, de traçados bem delineados. Brejeira, acanhada, que jamais ousou subir ao palco deslumbrante da fama, mas fascinante na sua pequenez, na sua quase sem pressa de crescer.
No encontro de seus dois rios que mais me pareceram dois braços, senti o enlace de um abraço acanhado, tímido, mas aquiescente na fluidez da energia que pôs em perfeita harmonia a minha sensação de paz espiritual. Foi no calor dos seus 40 graus onde o destino soltou as amarras da minha nau e me fez aportar nos braços de Teresa Cristina, ou simplesmente Teresina.
Iracema – Símbolo do Ceará. Personagem do Romance Iracema, do também romancista cearense José de Alencar.
Teresa Cristina – Imperatriz e esposa do Imperador do Brasil, D. Pedro II que reinava na época em que foi fundada a cidade. Teresina, portanto, é uma homenagem à Imperatriz Teresa Cristina.