Pedaço de porta azul
Depois que se é policial nunca se deixa de ser, ou melhor, parece que nunca foi nada além de policial. Seu jeito muda, porque seus ouvidos ouvem sons e volumes diferentes do que pessoas comuns conseguem, ou querem ouvir. Seus olhos deixam de enxergam muitas belezas, pois seus olhos ficam treinados a ver o mal.
Mas isso não aconteceu com ela. Por um tempo pode ser que sim, mas ela resistiu, instintivamente, resistiu. Seu “tino” para as artes insistia em romper as grades das celas e dos nos do coturno. De preto e escuro, já basta seu uniforme operacional, que aliás ela ama, apesar de amar a mistura de todas cores.
Foi por amar o azul, principalmente o turquesa, que ela percebeu, em meio aos escombros, um pedaço de porta azul. Naquele caos antes existia uma casa habitada apenas por sucatas. Ficava do lado da academia de ginástica que ela frequentava, e entre um exercício e outro, entre um respirar e recuperar o fôlego, seu olhar, mesmo que de folga, era atraído às sucatas. Seriam produtos de furto? Furto de fio de cobre estava em alta, e ali tinha de tudo. Será que finalmente ela devolveria às vítimas algo além de um pedaço de fio de varal furtado? Não, talvez alí só tivesse produto pronto a ser reciclado.
Pedaço de porta azul. Não era lixo, para ela eram várias possibilidades de decoração. Pensou em pegar e levar para casa. Mas isto é furto! Se imaginou sendo descoberta e sendo interrogada pela equipe de furtos da delegacia, exigindo explicações. Mas a tal equipe era ela. Não ia dar certo. Decidiu voltar mais tarde e conversar com algum encarregado da obra, e assim, levar seu pedaço de porta. Aquele pedaço de madeira já era dela. Ficaria na entrada de sua casa combinando com o outro móvel de madeira e almofadas de crochê. Aquele azul não se fabrica, só o tempo o faz, e o tempo passou.
Dias se passaram e ela voltou à academia. Olhou para o terreno ao lado, à procura do seu pedaço de madeira, mas só se via a cor do barro...dos tijolos e dos entulhos empoeirados. Nada de cor, nada de azul, seu pedaço de céu se foi. E se me permite Vinicius de Moraes, a casa era apenas uma casa que não tinha teto, não tinha nada... ela com cara de boba, ficou olhando para a casa de número zero.