Inferno Ortográfico
A Língua Portuguesa é deveras complexa. Bela, e assustadora. Assustadoramente formosa. Toda pessoa íntima da Última Flor do Lácio, idioma de Camões, admira-a, embevecida, e diante dela petrifica-se. Sua gramátiva, a Medusa lusitana. E a ortografia de seu rico vocabulário, de fazer palpitar, e suspender, o coração de todos. Quantas palavras há no completo dicionário, que jamais foi, e, acredito, jamais será, escrito, da Nossa Língua Portuguesa? Quinhentos mil? Um milhão? Ninguém sabe. Ninguém jamais saberá. Há palavras que são de simples ortografia, e qualquer pessoa a reconhece ao vislumbrá-la ao longe. "Caneta" (substantivo que designa o instrumento que uso para escrever esta crônica), "bolo", "ovo", "viver", "batata", "bonito" e "moeda" são algumas delas, populares, de todos amigas. Elas não constrangem ninguém. Mas há aquelas que atormentam os homens, tiram o sono dos justos. "Xícara", "enxada", "chapéu", "açúcar", "pesquisa", e muitas outras. Quem nunca escreveu "chícara" não é filho de Deus. E não é católico quem jamais escreveu "assucar". E "pesquiza" quem nunca a pôs no papel?! Levante a mão quem jamais pôs "ch" em palavras que pedem "x", e vice-versa, e quem nunca trocou "s" por "ç", ou por "ss", e "xc" por "c", e "ç" por "ss", e... Detenho-me. Entendeu-me o leitor. Se eu já me enrosquei com a ortografia de algumas palavras?! Mas é claro que já. Sou um filho de Deus, um humilde e pecador filho de Deus. A lista de palavras cuja ortografia me engasga tira-me do sério, rouba-me a paz de espírito. Não posso dá-la a conhecer, de tão extensa é, ao leitor, que me pede exemplos. Aqui estão dez: "despesa", "chácara", "xícara", "assombração", "pneumático", "esquisito", "chicória", "cereja", "cismar", "sossobrar". Se errei a ortografia de uma, ou mais de uma, delas, que me perdoe o leitor a ignorância. E lembre-se: você, leitor, que também é um filho de Deus, tem a sua arqui-inimiga. Qual é? "Chácara"?! "Exercício"?! "Malvado"?! "Doença"?! "Inconstitucionalissimamente"?! "Pindamonhangaba!?" E para complicar a brincadeira, inventaram de criar palavras de igual som e diferente ortografia: "mal" e "mau", e "conserto" e "concerto". E quantas mais?! Não me detenho para me recordar de outros exemplos.
São, agora que escrevo esta crônica, dez da noite. Daqui a pouco, me deitarei para dormir. Quero dormir em paz, com os anjos, e com a Brigite Bardot. Não quero me revirar, na cama, a viver um pesadelo gramatical, a transpôr a noite em branco, e amanhã de manhã, às sete horas, retirar-me da cama, a bocejar, e sonolento percorrer todo o dia. Não irei, portanto, estender-me, aqui, a tratar de um assunto que me atormenta o espírito.
Sei que você, leitor, tem de se ocupar de outros afazeres. Para não prendê-lo com as minhas palavras, encerrarei a crônica, que é curta, com uma notícia, que trata de caso meu, pessoal, que me disponho, e com muito boa-vontade, a compartilhar com você, que merece conhecê-lo: de todas as palavras que eu conheço, e eu digo, sem falsa modéstia, que é meu vocabulário razoavelmente rico (Queriam o que de um leitor de Camilo e Eça, de Machado, e de Rui, e de Coelho Neto?!) - há uma cuja ortografia atormenta-me enormemente, atazana-me imensamente, perturba-me grandemente, inferniza-me diabolicamente: associação. Eu a escrevi com a ortografia correta, sei, porque, antes de a pôr no papel, consultei os queridos pai-dos-burros que tenho à minha disposição, os dois. Até hoje, se me atrevo a escrever, sem me dignar a consultar os meus tutores, a palavra que tanto me aflige, incorro em erros grosseiros, imperdoáveis para um leitor de Camilo, Eça, Machado, Rui e Coelho Neto. Não sei se a palavra que tanto me rouba a tranquilidade de espírito se escreve com dois "esses", com "ce" ou com "cedilha". Queima-me o espírito em tal inferno ortográfico, dantesco!