Guru rasga o livro de ponto
Numa transição de chefia, assume o comando um jovem funcionário, enquanto se espera o novo chefe. Interinidade de uns três meses, tempo bastante para o jovem funcionário cismar com Eva, encarregada das comunicações. Havia um problema: Eva, que no Paraíso chegou em segundo lugar, ali no trabalho chegava sempre atrasada. O horário de entrada era às nove horas, ela só chegava ao meio-dia. Foi advertida várias vezes, explicava que não conseguia se levantar cedo, seu biorritmo era incontrolável e que, sob várias chefias, trabalhara depois do meio-dia. Ela não se negava a sair mais tarde, apenas não conseguiria jamais chegar cedo. Poderia continuar assim?
O jovem substituto, porém, não queria conversa, precisava exercitar sua autoridade, colocou livro de ponto para assinatura, na chegada e na saída. Os outros também assinariam, mas nenhum chegava com aquela demora, a não ser em situações muito especiais. Ao fim e ao cabo, só Eva seria atingida.
Aí entra em cena quem? Quem? Quem? De novo, nosso Guru. Ele toma as dores de Eva. Vai à recepção, pega o livro de ponto recém-instituído com o recepcionista Luciano, rasga-o com raiva e deixa o recado:
- Se o Ronaldo quiser o livro de ponto, que vá buscar comigo na Contabilidade. E avisa: o furador de papel lá de cima pesa três vezes mais do que este aqui da Portaria.
Na mesma hora, informado por um Luciano assustadíssimo, subi à Contabilidade para falar com Guru. Eu estava preocupado, a ditadura usava e abusava no Brasil, e disse:
- Você está doido, cara? Eles vão te mandar de volta pra Brasília e ainda te fichar de comunista. Sabe como estão as coisas agora, né? Não tem processo, não tem nada, nem precisa prova.
Sabem qual foi a resposta dele? :
- Agradeço sua preocupação, mas fica tranquilo. Não vão fazer nada. Lá em Brasília eu tenho fama de doido por causa da história que vou te contar qualquer dia desses. Alguns dias depois, ele contou essa história, que contarei em outra crônica.
NA MANHÃ SEGUINTE:
Na manhã seguinte, sol resplandecendo na neve, lá vem Guru pela calçada, parcialmente oculto pelo casaco e um capuz, a barba salpicada de neve, o largo sorriso emendando com os olhos e uma enorme corbeille de flores, quase tapando sua cara. Nossos caminhos se encontram na porta do escritório. Perguntei:
- Lindas flores. Aniversário de quem?
- De ninguém. As flores são para o Ronaldo. Fui muito grosseiro com ele ontem. Quero me desculpar por isso. Mas mantenho minha opinião: a Eva não será punida.