Alguma coisa tem que ser para sempre
Presa do dom que Deus me pôs
Sei que é Ele a mim, que me liberta
Sopra a vida quando as horas mortas
[...] E ainda me faz ser
O que sem Ele não seria
(trecho da Canção Dona do dom, Maria Bethânia)
Post peccatum as coisas se desequilibraram, perderam o seu centro, a vida escapou à ordem, instalou-se a rivalidade, a morte virou tragédia, a eternidade uma busca e a natureza humana passou a exigir que inscrevamos algo de definitivo sobre a superfície deste material efêmero que somos – como diz Hans Urs von Balthazar. Eis a angústia: alguma coisa precisa ser para sempre! – este é o sentimento, esta é a necessidade. Há quem, a partir da experiência da fé, tome consciência disto em algum momento da vida. Há quem apenas viva no meio do caos, mandando tudo às favas. Há os que estão a meio caminho.
O viés da religião, seja qual for sua matriz, é um austero caminho pelo qual a natureza humana busca o sobrenatural perdido, aquele algo definitivo que o exílio nos fez deixar para trás, no Jardim. Cada uma com sua liturgia, com seus ritos e cultos, com seus dogmas e símbolos, a fim de alcançar outra vez o infinito. Para nós cristãos a cruz de Cristo é o ícone de tangência deste drama humano desencadeado a partir do pecado. Tal desfecho, revelou, por sua vez, também o drama divino – Pai, se possível afaste de mim este cálice. Em suas meditações sobre o mistério pascal, von Balthasar ensina que a obediência amorosa [de Cristo] é, de fato, mais profunda e definitiva do que toda a rebelião do pecado consegue ser. Uma morte, a de Cristo, como superação de toda a morte, eis o paradoxo.
Aqui, pisamos no campo da solidariedade divina para com o pecador. Deus não mendiga nada, pois nada lhe falta. Contudo, a ligação amorosa que ele tem com cada pessoa, ligação que lhe vem das entranhas, feito mãe e filho, leva-o a uma identificação radical, inequívoca e inalienável sua conosco em tudo – posto que lhe somos imagem e semelhança. Reconhecer ou não que Deus é assim não afeta Deus, mas interfere diretamente no que nos tornamos ao longo da vida. Compreender essa aproximação que faz Dele um mendicante na nossa miséria é avançar no mistério da Encarnação e da Redenção.
O Criador se coloca próximo de sua criatura, ao seu lado: sofre em seus sofrimentos, se alegra em suas alegrias, atua em sua liberdade, é ferido por seus pecados. Permanece sempre fiel – seja quando cultuado como Deus, seja passando despercebido em sua opcional mendicância. Para além dos equívocos de quem o busca, da soberba de quem o rejeita ou dos que lhe são indiferentes, deixou em todos a capacidade de O conhecerem. O ser humano é um capax Dei – capaz de Deus, expressão cunhada pela tradição do pensamento cristão.
Esta capacidade conferida à nossa natureza é manifesta nas mais diferentes formas que anseiam expor algo do divino – arte, poesia, música, arquitetura, espiritualidade... – e ensaia o desejo do eterno na transitoriedade desta vida. Nada escapa a este desejo, tanto que até a morte é celebrada. Se para o viver, o mistério é menos indecifrável, quanto à morte, ela permanece o que há de mais incompreensível. O reconhecimento do estado de finitude faz emergir um sentimento de impotência, ponto no qual tudo pode ser colocado em cheque, nem que seja por um momento apenas. É preciso, porém, ir avante. Afinal, alguma coisa em nós precisa ser para sempre.
Como fazê-lo? Acrescentando eternidade aos nossos dias. Se a exigência é imprimir algo de definitivo neste terreno transitório que somos, é porque é possível às flores cultivadas no tempo exalarem uma fragrância de eternidade. Fizeste-me sem fim – reconhece poeticamente Tagore. Tem de haver alguma coisa que permaneça depois de nós, além de nós e dentro de nós. Descobrir isto é encharcar-se de eternidade. Somos capazes de Deus, pois assim fomos feitos. E o único eterno que pode imprimir eternidade naquilo que faz e por onde passa é Deus. Os que já partiram tiveram suas chances. Não desperdicemos as que nos restam. O que vem de Deus, não morre, é eterno. Busquemo-lo, sempre!