Guru e Golias
Em meados do sec. XVII, o rei Christian V ordenou a construção do canal Nyhavn para servir como principal porta de entrada para o mar em Copenhague, diz o Google. Com o passar dos séculos, Nyhavn virou o mais conhecido cartão postal da cidade.
Pois bem, saltemos do sec XVII para uma tranquila tarde de 1979, começo de outono. Com o trabalho burocrático encerrado, Guru se espreguiça e pergunta se quero ir a Nyhavn. Topei. Tomamos o ônibus em Hellerup e, em meia hora, já fazíamos parte da paisagem daquele cartão postal. Damos uma volta, respiramos o ar fresco, escolhemos um kaffe ao acaso. Cabelos revoltos, barba quixotesca, usina de ideias, esse é o Guru. Vamos ao que interessa: papear. Entramos, sentamos e pedimos a cervejinha:
- Tuborg ou Carlsberg, pergunta o Guru, louco para iniciar a conversa. Eram as duas cervejas mais populares naquela época. Vamos, desta vez, de Tuborg.
Começa o papo. Da janela, se vê o movimento dos pequenos barcos, o cartão postal ganha vida. Guru entra no seu assunto do momento, a carta que Morris West, autor do livro "O Verão do Lobo Vermelho", lhe havia escrito. Discorre sobre o conteúdo e se esquece do mundo, a Tuborg esquenta, garrafa fica pela metade, não damos muita atenção ao garçom. Pois ele estava inquieto, rodeava nossa mesa, parece que rosnava sem mostrar os dentes.
Naquele tempo ainda não havia muitos estrangeiros residindo permanentemente em Copenhague. Eu conhecia alguns exilados políticos, poloneses e outros europeus orientais, fugindo da opressão soviética. Havia também muitos sul-americanos, brasileiros, chilenos, argentinos e bolivianos, perseguidos pelas ditaduras do Cone Sul. Mas eram exilados. Sabe-se lá o que pensava o garçom. O certo é que estávamos conversando sem gastar, talvez tenha sido nosso maior pecado.
- "Isso é um desaforo, tenho que interromper", deve ter pensado o gigante viking, um Golias de quase dois metros de altura e quase o mesmo de circunferência, esta disfarçada num avental de xadrez croata. "Os senhores estão usando as instalações, têm que gastar", continuava pensando. "Saem de suas terras e acham que mandam alguma coisa por aqui? Esse governo dá moleza demais pra estrangeiro."
Mas nem só de pensar vivia o gigante. Aproximou-se e reclamou, nem se dando ao trabalho de arranhar inglês, os insultos saíam na língua materna mesmo. Guru se sentiu ultrajado, não suportava autoritarismos. Derramou o que restava de cerveja, quebrou o bico da garrafa no tampo da mesa e os seus sessenta quilos encararam o avantajado viking com a arma improvisada. O bárbaro não se assustou, sabia que tinha envergadura suficiente para tomar a garrafa de Guru, levantá-lo pelo colarinho e esmagá-lo com a manápula. Aí avançou. Reduzido a minha insignificância, não vi outra saída: saltei sobre o corpanzil do gigante, trancei as mãos pelo seu pescoço e fiquei balangando nas costas dele, os pés a quase um metro do solo. Não queria nada além de conter o tiranossauro e dar um tempo para Guru fugir, mas Guru não fugia. Continuava afrontando perigosamente o grandalhão, que talvez nem sentisse a mosca se debatendo em suas costas.
A coisa poderia ter se transformado em tragédia, mas logo apareceu o pessoal da cozinha, nem tanto em nossa defesa, os cabeças-pretas, "sorthåret", como os latinos eram chamados, mas principalmente para preservar o conceito do lugar. O que devia ser o gerente pediu desculpas, não cobrou a cerveja que tomei nem a garrafa quebrada.
Guru não comentou o ocorrido, a não ser pela frase: não aceito ditadura! E assim se encerrou o incidente em Nyhavn. O rei Christian V, apesar de ter sido um machista e um déspota, exatamente o oposto de Guru, onde estiver, deve ter se alegrado com o final feliz. Seja como for, Nyhavn preserva sua memória.