Na praça, a mulher nua.
Aconteceu há três, quatro meses, mas só agora decidi escrever a cena que então testemunhei, cena que não me agradou, e não me agradou porque o seu personagem central atuou à margem, e não sei por qual razão, ignoro-a, da vida em locais públicos, que aprova certas ações, e desaprova outras, para que o convívio entre as pessoas não seja insuportável, impossível.
Foi na praça Monsenhor Marcondes, a nossa Praça da Cascata, no centro de Pindamonhangaba, a nossa querida Princesa do Norte - por nós pindamonhangabenses, ou simplesmente pindenses, carinhosamente chamada Pinda -, um pouco antes do meio dia. Saí, a pé, da casa de um de meus tios para ir à uma agência bancária, que se situa em uma das margens da praça Monsenhor Marcondes, e à praça aproximando-me da sua margem esquerda, indo sentido bairro-centro, percebi pequenos agrupamentos de pessoas espalhados em alguns pontos da praça e na calçada do outro lado da rua Capitão José Martiniano Vieira Ferraz, pela qual eu seguia, o olhar de todas as pessoas convergindo para um ponto, que eu então não via, pois entre eu e o ponto em questão, que, vim a saber segundos depois, era uma pessoa, mulher de uns quarenta anos, havia uma "gruta".
Aqui, sou obrigado a interromper a narração e descrever, superficialmente, com os detalhes que ilustram a cena, um pequeno território da praça Monsenhor Marcondes, território que desta corresponde a, aproximadamente, um sétimo de sua área total. Há neste território um rio artesanal, de um metro de largura e um metro de profundidade, creio eu, cuja extensão, de uns oitenta metros, forma quase que um círculo, e no interior deste - e deste é o rio as bordas - está a "ilha" (uma ilha circundada por um rio, que não tem nascente - melhor, tem, e esta ela na "gruta"). Observando a cena a partir da estreita rua que nasce da Capitão José Martiniano Vieira Ferraz e desaguá na Avenida Doutor Jorge Tibiriçá, vemos, à esquerda, a "gruta", e à direita, ao alto, uma plataforma onde se realiza espetáculos musicais, exposição de arte e outras atividades culturais, e sob a qual passa o rio, cobrindo, deste, um trecho de uns doze metros. A "gruta" é uma saliência artificial que imita uma pequena montanha rochosa do topo da qual despenca as águas da cachoeira, a cascata, para dentro do rio. Daí o povo apelidar a praça Monsenhor Marcondes de Praça da Cascata. Em tempo, digo: É a "gruta" externa ao círculo constituído pelo "rio", com este fazendo fronteira. E é a montanha chamada gruta porque em seu interior há uma gruta com duas bocas em sua face externa, que dá para a rua Capitão José Martiniano Vieira Ferras, e duas, menores, em sua face interna, às quais se chega por pequenas e estreitas pontes - e tem a montanha uns quinze metros de extensão, e uns quatro metros de altura o seu ponto mais alto. E une a "ilha" ao "continente" (o restante da praça) duas pontes, uma no chão da cena, a outra, no topo.
Descrita, rapidamente, a cena, sigo com o relato.
Curioso com a atenção que várias pessoas devotavam a um certo ponto, que estava, eu sabia, na "ilha", assim que passei pela "gruta", voltei a minha atenção para a direita, e vi, nua, saindo da "ilha", e entrando na plataforma, a mulher, morena, amulatada, grandalhona, nua em pelo. Não sei se estou certo, mas acredito que eu tenha arregalado os olhos ao tê-la em meu campo de visão. Recuso-me a descrever-lhe o corpo, cujos traços estão bem gravados em minha memória. Segui meu caminho. Ao olhar para as pessoas mais próximas de mim, ao passar por elas, notei que elas, além de teceram, num tom de voz baixo, umas para as outras, quase a cochilar, alguns comentários tímidos, tinham estampados no rosto ar constrangido, como que condoídas da condição da mulher nua; não vi, em nenhuma delas, riso, sinal de reprovação; vi, além do constrangimento, pudor e pesar. Segui o meu caminho. Transpus toda a extensão da praça, que não é muita, uns cem metros, se muito, e cheguei à rua dos Andradas, que atravessei; e subi à agência bancária, onde, no caixa eletrônico, efetivei, em uns dois minutos, o pagamento de uma ou duas contas e um saque em dinheiro, se não me engana a memória - e não me esforço para resgatar do núcleo dos meus neurônios os verdadeiros detalhes, que para esta crônica são irrelevantes. E pisando pelas mesmas pegadas que na calçada da praça deixei impressas, agora em sentido contrário, para regressar à casa de meu tio, vi, na "ilha" da praça, a mulher nua caminhando para o "rio" no ponto em que da "gruta" as águas da cascata nele encachoeiram-se, e, no outro lado da praça, na calçada, à avenida Doutor Jorge Tibiriçá, uma viatura policial e uma ambulância, policiais e paramédicos a confabularem, presumo, quais procedimentos seriam os seus para conduzirem a mulher à ambulância, e da ambulância a um hospital. Não me detive. Não me agradam tais espetáculos. E eu nada poderia fazer em favor da mulher, além de respeitá-la, e eu a respeitaria, ao ver que as pessoas que têm competência, os policiais e os paramédicos, para agir com propriedade em tais casos, prontos a empreender a ação devida, se eu seguisse o meu caminho - o que fiz sem pensar duas vezes.
As pessoas que haviam se detido para olhar a cena que lá se desenrolava, tinham, no rosto, estampados, constrangimento e pesar, sensíveis à condição da mulher, todas a intuir, e corretamente, veio a se saber depois, que se tratava ela de uma pessoa que sofre de distúrbios mentais. Ora, não se faz necessário nada mais do que bom-senso para se concluir que apenas pessoas que não estejam de posse de íntegra condição psicológica desnuda-se, em um lugar público, e bem movimentado, assim, do modo que aquela mulher o fez. Ao contornar a "gruta", para a esquerda, e atravessar a rua, vi, na "ilha", um policial e um paramédico, e a mulher a banhar-se no "rio", sob a cachoeira, e, para a minha desagradável surpresa, distante de mim, à minha eaquerda, uns vinte metros, entre as motos estacionadas, um homem, de posse de um smartphone, na postura de quem estava a filmar, atento, diligentemente, a mulher nua, os braços dobrados de modo a conservar o dispositivo móvel diante dos olhos, a poucos centímetros deles. Perguntei-me o que faz uma pessoa, no caso um homem, a gravar um vídeo de uma pessoa que, no caso uma mulher, está, a conduta dela indicava, numa situação que merece compaixão, respeito, compreensão, e não desrespeito, curiosidade mórbida. Qual a razão de ser do procedimento daquele homem? A vida não lhe havia ensinado que pessoas que se desnudam em locais públicos, com a sem-cerimônia com que aquela mulher o fez, e na presença de dezenas de pessoas, indiferente a elas, e com policiais e paramédicos a abordarem-la, não conta com a sanidade mental? Com certeza digo que ele sabia de tal realidade, pois os poucos cabelos, e cabelos grisalhos, que ele carregava na cabeça, e a pele razoavelmente enrugada, haviam lhe ensinado o que se passa com tais pessoas. O que ele pretendia empreender, qual atividade, com o vídeo que ele estava a gravar? Exibi-lo aos amigos, para que todos se divertissem à custa de uma pessoa doente? Usá-lo para a satisfação de um incontível, indomável prazer onanista? Não sei. Não tenho as respostas para as perguntas que me fiz. A existência de todas as pessoas que à cena assistiam, no semblante estampados constrangimento, pudor e pesar, e a dos policiais e dos paramédicos, que, compreensivos, cuidadosos, sensíveis à condição da mulher,agiram apenas após dedicarem alguns minutos para, em conversa, decidirem a ação de modo a não ferir, constranger, desrespeitar a mulher, que pedia por socorro e compreensão, e não risos de mofa, comentários desrespeitosos, maldosos, chacotas, e deboche, presenteia-me com uma imagem salutar, que anima a minha esperança no ser humano, que sabe agir com presteza, e empatia, respeito, e amor, pelos seus iguais.
Esta crônica descreve, em poucas palavras, uma cena que para o leitor talvez represente algo insignificante. Assim não penso. Em tal "insignificância" vejo o ser humano em cada ser humano; vejo tipos humanos reais, e não ideais; vejo seres concretos, e não abstratos.
É a cena que aqui descrevi uma amostra do microcosmo social humano. Felizmente, em sua maioria é o ser humano, com todas as suas falhas, ser decente; se assim não fosse, estaria a humanidade já extinta. Mas aquele homem com o smartphone...