A caixa
Dias atrás foi o dia dos mortos. Se você tivesse ido ao cemitério no final da tarde, pouco antes de fechar, iria ver uma coisa que eu acho muito bela. Se não choveu o dia inteiro, como é de praxe para o dia de finados, a luz dourada do entardecer deitou suavemente sobre um mar de flores que cobriu a última morada daqueles que já descansam na paz de seu Deus e também para aqueles que nunca tiveram fé, já que ali, independente de crenças e ideologias, descansam todos sem distinção.
Muita gente torce o nariz quando eu falo do lindo mar de flores que se vê nos cemitérios no dia de finados. Eu lamento, mas não consigo ver a morte com os olhos agourentos ou apavorados de muita gente. Vou é aproveitar a oportunidade para contar algo sobre alguém que já morreu.
Minha avó materna tinha uma caixa, último remanescente de privacidade. Desde que eu era bem pequena a via guardando nessa caixa preciosidades e segredos, os quais eu não fazia idéia do que fossem já que eram segredos.
Ela morreu com cinqüenta e quatro anos e eu achei aquilo um absurdo. Nem o benefício da aposentadoria ela chegou a aproveitar. Alguns dias após o velório lembrei-me da caixa, que eu bem decorei o lugar onde ficava escondida.
Sozinha em casa fui apressada retirá-la do local secreto, na esperança de que ela contivesse algo valioso que explicasse a vida tão sofrida da minha avó.
Interessante notar que a princípio eu fiquei confusa com o que encontrei dentro da caixa, mas com o passar dos anos e a chegada da maturidade, fui constatando pouco a pouco que a caixa realmente continha algo muito valioso, um grande segredo para a vida, senão de todos, ao menos para a minha.
A tal caixa altamente secreta continha bilhetes, cartões, cartas e pequenas lembranças de pouco valor. Pensei que não era possível que minha avó tivesse tanto luxo com aquelas pequenas coisas.
Comecei a ler o conteúdo da caixa e compreendi qual era o tesouro de minha avó.
Uma parte dos bilhetes era de pessoas estranhas para mim, pais de crianças que estiveram internadas no hospital onde minha avó havia sido uma mera cozinheira durante grande parte de sua vida. Alguns bilhetes vinham acompanhados das fotos das crianças. Para que vocês entendam o porquê, é preciso que eu explique que minha avó foi o que na tradição popular as pessoas chamavam de “benzedeira”. E benzia de tudo, vocês podem crer.
Dentro daquela caixa havia enfim, recados das mais variadas pessoas. Encontrei até um bilhete de um médico com quem ela trabalhou. Mas todos esses recados tinham uma coisa em comum. Eram bilhetes e cartões de agradecimento.
E fui constatando: “obrigada por benzer meu filho que agora está curado do mal de simioto” ou “fico muito feliz que a senhora tenha descoberto que a menina só queria comer galinha assada” ou ainda “agradeça a sua netinha por ter dado a bicicleta dela ao meu menino que já nem comia”. Peraê! Então foi isso que ela fez com a minha bicicleta azul? Agora eu entendo porque ela se apoderou da minha bicicleta dizendo que eu não precisava mais dela, que não andava e que ela iria criar teia de aranha.
E no meio de tantos bilhetes, uma cartinha cheia de desenhos de flores que dizia mais ou menos assim: “Querida vovó, você é a única pessoa que soube entender o que eu tanto queria. Você sempre acredita nos meus sonhos, por isso um dia vou escrever uma linda história sobre você, para que todos saibam como você é importante e que é a maior mulher do mundo”.
Era incrível. Era a minha carta, que escrevi na ocasião do meu aniversário de doze anos no qual, após todos rirem de mim quando afirmei que queria ser escritora, minha avó chegou em casa com uma máquina de escrever para me dar de presente.
Aprendi com minha avó e sua caixa que o bem estar das outras pessoas e seus sonhos nunca devem ser desprezados. Aprendi que a gratidão é um tesouro que deve ser guardado a sete chaves e que é o único valor que conseguiremos carregar conosco para onde formos. E apesar de a caixa ter ficado comigo, cada um dos sentimentos está com ela.