Zélia Gattai

A tia Zelia faleceu hoje.

Eu a conheci em 71 na casa do Rio Vermelho, carnaval na Bahia, e lá fiquei noivo de sua sobrinha, a Marice Gattai, com quem me casei. A Luiza Gattai, minha netinha, fez com que o dia de hoje não ficasse muito triste.

Lembrei-me de um texto, que está em meu livrinho onde falava dela.

Transcrevo:

para uma jovem escritora:

“Este casamento você deve a mim”, disse-me a escritora enquanto autografava seu último livro. Aos 85 anos, ainda mantinha um olhar juvenil, uma vivacidade privativa do espírito, que não envelhece e fica cada vez mais jovem, quanto maior a atividade. Ela se tornara escritora aos sessenta anos. Sempre fora uma exímia contadora de histórias. A convivência com o marido-escritor introduzira-a na carreira. Agora eram vários livros publicados e, primeira vez, autografava na solidão; o companheiro partira e ela não desistira do ofício, uma maneira de se manter viva, projetar a vida para além das fronteiras, viver em vários lugares ao mesmo tempo.

“Este casamento você deve a mim.”

Reportei-me a Salvador, trinta anos passados, a longínqua capital com suas cores, cheiros, ladeiras, praias, farol e carnavais. Não sei por quais desígnios a cidade me imantara. A praia da Barra e o encontro casual com o Edson Gattai me levaram a conhecer a escritora na casa do Rio Vermelho.

Nesses trinta anos eu a vira duas ou três vezes. Ela fora uma espécie de intermediadora sentimental entre mim e sua sobrinha, com quem me casei. Daquela longínqua cidade, voltei com uma determinação que se cumpriu.

Sua obra é memorialista, retoma trechos da história de sua vida, que se confunde com a nossa, a da cidade de São Paulo, a do Brasil, e de tantos imigrantes, que nos antecederam e prepararam o terreno para as futuras gerações.

Algumas de suas atitudes chamaram-me a atenção no decorrer desses longos anos: a fidelidade às amizades, independentemente da cor política ou credo; a coragem de se declarar sem ter nenhum, por não conceber uma vida depois da morte; a dedicação ao amado marido e à família; a altivez e a dignidade de quem não teme críticas.

Das posições mencionadas, eu faria apenas um reparo: se o companheiro continua vivendo em sua recordação, segredando coisas aos seus ouvidos, dizendo que ela é uma danada, por ter entrado na Academia, então ele não morreu, nem para ela nem para os tantos leitores que, como eu, aprenderam com ele a gostar de ler e de escrever.

Nagib Anderaos Neto

17/05/2008

Extraído do livro Guardados Que Vivem.