CRIPTOMNÉSIA - Ou as voltas que a mente da...

Em idos de 2017, que nos parece hoje tão distante, comentava com um amigo- escritor habilíssimo- sobre o meu embaraço intelectual ao tentar encampar um antigo projeto, sempre adiado, de escrever um livro de contos.

Explicava,embaraçado, que sempre após o ponto final, ficava com a sensação esquisitíssima de estar plagiando Rubens Fonseca e falei do conceito de criptomnésia.

- Cripto o quê!? – perguntou ele assustado.

- Criptomnésia, meu velho. São lembranças, memórias inconscientes que surgem em nossa cabeça como se fossem coisas originais. Pra quem lê desde criança é um perigo retado na hora de escrever um conto...

- Rapaz, esses psicólogos inventam é coisa, viu?! Que zorra de criptocaralho nenhum negão, escreva sua zorra, rapaz! – ele falou no baianês mais polido que encontrou.

- Vou ver...

O fato é que a sensação não passou e os contos permaneceram ou no HD – Esperando que algum vírus decida por mim apagando tudo – ou na cabeça, onde Chronos e/ou a cachaça deverão lentamente fazer o mesmo serviço, me livrando da vexatória acusação de plagiador.

Essa história me veio à mente hoje em um episódio aparentemente desconexo:

Em abril de 2018, após o trauma do golpe e com as pesquisas apontando a intenção sufragiocida de grande parte do eleitorado brasileiro, eu escrevi um poema tosco e distópico, recheado de imagens pra lá de macabras ao qual dei o sinistro título de “A manhã do fim dos dias”:

Eis:

Na manhã do dia da vingança choveu um sangue enegrecido

Chegaram trezentos cavaleiros magros (também sangrando)

Sem discursos ou caminhar altivo

Apenas o abatimento entorpecido que precede o cadafalso.

Um vento norte profanou as sete princesas virgens.

No cais vários galeões drapejavam velas de pele podre,

Ratazanas tripulavam a ponte de comando

Seus capitães jamais voltaram (ou partiram)

Os combates seguiram além do porto

E a maré aspergiu corpos pela praia.

Há muito as crianças se foram

Mas o cerimonial tocou risos e brincadeiras

Os sacerdotes haviam encontrado velhas gravações sob as ruínas da mesquita

Os jovens que restaram executaram as danças ensaiadas

E riram o riso empodrecido dos quase mortos.

Engalanado, o Grande Líder compareceu à cerimônia

Montando o último corcel branco da manada

Falou-se que comia entranhas das viúvas.

Injúrias. Jamais tocara os humildes...

De pé, nus e envaidecidos, os reis decaídos aguardavam.

Todos se perguntaram por que sorriam, recitavam Maiakovski e cantavam.

Os carrascos juraram que eles ainda possuíam lágrimas e que os viu chorar.

O que pensavam ninguém jamais saberá ao certo...

Nem os cronistas sabem o que foi feito dos corpos

Dos últimos poetas sobre a Terra...

Convicto estava eu, para o bem ou para o mal, da minha autoria até que, hoje relendo “Poesias Reunidas” de Mário de Sá Carneiro cuja obra tive contato em quando Adriana Calcanhotto musicou o poema “O outro” no álbum “Público” em meados dos anos 2.000.

Confesso que à época, a obra não me impressionou muito, mas esqueci de combinar com meu subconsciente já que, percebendo hoje em perspectiva, aquele meu esquisito poema de 2018, tem trechos e “clima” claramente retirados de “Ângulo” poema de Mário Sá Carneiro que eu juraria de pés juntos que jamais houvera lido...

“Ângulo

Aonde irei neste sem-fim perdido,

Neste mar ôco de certezas mortas? –

Fingidas, afinal, todas as portas

Que no dique julguei ter construído...

- Barcaças dos meus ímpetos tigrados,

Que oceano vos dormiram de Segrêdo?

Partistes-vos, transportes encantados,

De embate, em alma ao roxo, a que rochedo?...

- Ó nau de festa, ó ruiva de aventura

Onde, em Champanhe, a minha ânsia ia,

Quebraste-vos também ou, por ventura,

Fundeaste a Ouro em portos d'alquimia?...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Chegaram à baía os galeões

Com as sete Princesas que morreram.

Regatas de luar não se correram...

As bandeiras velaram-se, orações...

Detive-me na ponte, debruçado,

Mas a ponte era falsa - e derradeira.

Segui no cais. O cais era abaulado,

Cais fingido sem mar á sua beira...

- Por sobre o que Eu não sou há grandes pontes

Que um outro, só metade, quer passar

Em miragens de falsos horizontes –

Um outro que eu não posso acorrentar...”

Como diria meu vô Jibóia: Apois...: Naus, Galeões, princesas virgens, cais, velames, perdição...Nada disso foi fruto da minha cabeça. Estas imagens estavam, malocadas pelo ego, recônditas em alguma reentrância da minha memória até a tal da criptomnésia me iludir, revelando-a como sendo a última cerveja dominical na geladeira...

Nenhum homem é uma ilha. Tudo que se faz é construção.

Dominemos o ego e cuidemos das nossas cacholas. Elas nos pregam peças bem embaraçosas.

Bom domingo.

Nairson Luiz Santos
Enviado por Nairson Luiz Santos em 08/11/2021
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