A ENCOMENDA
O rapaz se sentou na cadeira enferrujada daquele bar de beira de rua. Pediu, uma após outra, doses duplas de cachaça limpa, daquelas que entram reesuscitando mortos. Pagou ,com antecedência, várias rodadas.
Ficou ali bebendo todas e olhando a tela da TV colocada estrategicamen
te entre garrafas de casca-de-pau. O mosqueiro cobria as rolhas. O rapaz repetia as palavras do âncora: milhões, bilhõies, mensalões. Depoimentos, homens engravatados trocando tapas, uma senhora de blusa amarela batia palmas e dançava. As figuras se moviam turvas, trêmulas. A boca do repórter assemelhava-se a uma grande ostra. Uma mosca varejeira decolou de uma das rolhas e pousou bem no meio da ostra. O aparelho desligou nas retinas do bêbado. As imagens, no entanto, se sucediam num fundo vermelho na cavidade dos olhos. Viu um pastor pregando e a filha de Herodíades dançando. O fogo do inferno lambia sensualmente pecadores convictos. Atrizes da década de 50, voluptuosas deusas, excitavam recém-chegados ao paraíso dos sentidos.
O rapaz, com o copo apertado nas mãos, tentou ainda alcançar os lábios e foi derreando, derreando, da cadeira até a calçada_arrastando consigo o bornal e a mesinha de plástico. As moscas decolaram juntas coreografando, evoluindo sincronicamente, das rolhas borradas até o monturo humano. A maior das voadoras fez uma pirueta e, em rasante, entrou na boca babante do vencido pelo álcool.
Às duas da madrugada, o dono do bar fez a última tentativa empurrando com o pé direito as costelas do cliente. Em seguida, desceu a porta de seu respeitável estabelecimento de lazer.
Quatro e trinta de um amanhecer de frente fria vinda das bandas da Argentina. Tinha razão a moça da previsão do tempo.
O rapaz, entre dormindo e acordando, não entendeu os lances desconexos de Evo Morales, Hugo Chávez e Lula sorrindo com os dentes novos e as mãos perfeitas. Aproveitou e sonhou um pouco mais.
Estava na Alemanha , na Copa do Mundo. Que bonito! Agora sim. As pernas de Ronaldinho Gaúcho convenciam a bola. Era gol atrás de gol, grito atrás de grito. Depois, o hotel, o jantar especial. Ali, cara a cara com os craques. Noite feliz. Mulheres belíssimas, loiras, olhos azuis e bustos marmóreos como os dos textos lidos pela professora do curso noturno.
O sonho amanheceu em ruas amplas, floridas, limpas, organizadas, para as quais todos os adjetivos seriam insuficientes. O sonho entardeceu em parques, lojas, restaurantes. O sonho anoiteceu num teatro, entrou na limusine e ordenou o regresso ao hotell.
O dia amanheceu na calçada podre e na televisão repetitiva: milhões, bilhões, trilhões...
Por que o senhor não fez a entrega da encomenda? O senhor tem alguma noção de que encomenda era aquela? Vamos, fale. Diga alguma coisa. Justifique-se.
Eu estava na Alemanha.
Na Alemanha?!!!! Fazendo o quê? O senhor enlouqueceu? Ande, responda, antes que eu perca a minha paciência com você.
A autoridade caminhava de um lado para o outro na sala de delegacia de polícia. Passava as mãos nos cabelos azulados cuja cor original se havia diluído nas tintas das letras do Código Penal. Era até um homem tolerante, mas aquele bafo azedo de dia seguinte torrava-lhe os limites jurídicos.
Vamos, responda. Por que não efetuou a entrega? O senhor está consciente de que tenho autoridade suficiente para lhe mandar para o xadrez? Dou ao senhor apenas um minuto para apresentar uma justificativa plausível.
O rapaz olhou bem nos olhos do juiz e respondeu, aliás, perguntou:
Me diga, Excelência, o senhor perderia a oportunidade de ver a Copa do Mundo? Perderia de conhecer um país como a Alemanha? Perderia aquelas loiraças? O senhor veja, seu juiz, pense ... com todo o respeito, se o senhor fosse um pobre entregador de correspondências e encomendas,perderia uma chance dessas?
Uma mosca morta que estava achatada na gola da camisa do carteiro, despencou e caiu no birô do delegado. No aparelho de Tv suspenso na parede da sala, o repórter da boca de ostra de tira-gosto noticiava o escândalo das ambulâncias, o caso dos CDs e dos chips, o valerioduto, o Congresso, o terror em São Paulo, a volta da CPI dos Bingos, Delúbio outra vez.
Não, não perderia. Para ser sincero, eu estaria lá. Qual foi mesmo o hotel onde você ficou hospedado?
Saíram os dois conversando. O delegado mergulhado no noticiário. Era a vez de uma matéria sobre um seqüestro e de uma ação policial sob sua responsabilidade.
Alguns dias depois, os peritos apresentaram um laudo sobre a mosca morta por overdose de álcool. E o delegado está em uma prisão de segurança máxima.
23/5/2006