Sobre as florestas de matos verdes.

Sobre as florestas de matos verdes.

Para falar a verdade, eu não sei quase nada sobre florestas. Sou um urbano nascido em quintais acanhados. O que eu sei sobre elas é aquilo que eu ouvi, vez ou outra, de gente acostumada nas lidas com o mato, de jardineiros de asfalto, de caseiros de sítios impossíveis, de plantadores disso e daquilo, de veterinários calejados, de agrônomos idealistas, de geógrafos criativos, de velhos caiçaras, de aposentados da ferrovia, de ecólogos de quinze anos, de jornalistas caolhos, de professores e de professoras, de ativistas cegos, de índios aculturados, de caçadores envergonhados, de pescadores cheios de estórias criativas, além de alguma literatura e conjecturas próprias.

Hoje, não sei até quando, moro cercado de matos verdes. Abro a varanda de meu quarto e vejo uma gigantesca muralha bem em frente aos olhos. Uma muralha de quase mil metros de altura, crocante de grandes e lendários guapuruvús que na primavera, riscam de amarelo a paisagem verde a perder de vista. É de lá que surgem em bandos, as maritacas estridentes e alegres, os tiés-sangue, os anús brancos de longas caudas, as fascinantes saíra-sete-cores, os casais de sanhaços, pintassilvos, tucanos, siriris, bem-te-vis e outras dezenas de espécies de pássaros que fazem a festa valer a pena. É por lá que andam os catetos, rastejam lentas as preguiças, escavam os tatus, espreitam as onças que talvez ainda vivam e roncam os bugios.

De um jeito ou de outro, o que eu aprendi nesse caldo de cultura popular foi que uma floresta é uma complexa fauna no melhor sentido da coisa, cheia de animais vegetais, de ambos os sexos que, por bem ou por mal, se relacionam com os animais não vegetais. A floresta é uma disputa pelo direito de viver e se reproduzir, tal como, egoisticamente, o fazemos do lado de cá.

Nas escolas, professores robóticos nos ensinam, mal e parcamente, a considerar as florestas como “grandes extensões vegetais” que abrigam pouca ou muita diversidade biológica, dependendo do lugar e da latitude, etc. Para satisfazer a nossa pouca curiosidade sobre esse mundo fantástico mostram-nos velhos mapas na escala de um para cinco milhões, compilados sabe o bom Deus quando e impressos de raspão nos livros didáticos. É com essa imagem borrada de verdes e de amarelos, em cima de estradas vermelhas e cidades que parecem um alvo militar, é que vamos concebendo a idéia de florestas no Brasil ou qualquer outro lugar do mundo, o que é uma infelicidade, todos sabem, porque a última coisa que uma floresta deve ser é que seja um borrão impresso em papel.

Segundo apurei, uma floresta, além de ser um espaço de conquista, constitui um agrupamento de mães. Esse é o mais importante aprendizado que procuro transmitir, segundo deduzi de todos os mestres aos quais me aproximei. Tudo ali na floresta é mãe. Uma árvore é mãe. Um capim rasteiro e anônimo é mãe. A aranha, o sapo macho, o besouro, a borboleta, a bromélia, o cipó imbé, a formiga isolada ou em carreiros, o matacão enorme e ameaçador, as tocas na terra, os fios de água, a corredeira por entre as pedras, o pé fincado na lama, a chuva monótona, o calor de rachar, os borrachudos, o tapete de serrapilheira, o martim pescador no rasante da flor d’água, a caixeta tortuosa, as marias-farinhas correndo pelas raízes do mangue de cheiro ruim. Tudo isso é mãe.

Nunca ninguém falou que uma floresta é “o floresta”, uma coisa de macho. Na verdade, em se falando de florestas, todo mundo fala no feminino. Floresta é uma palavra feminina o que, para os mais atentos, faz toda a diferença do mundo.

Nos dias que se seguem, com um pouco de sorte e disposição, quando a gente consegue conhecer uma floresta antiga, podemos estar certos de que essa floresta é não só uma coisa feminina, como também um ajuntamento de velhas bisavós com suas netas e bisnetas, numa barafunda de diversidade que só as mães podem gerar. Natureza e mãe são duas faces da mesma moeda.

Consideremos por um momento um velho jacatirão, alto de trinta metros de altura, subindo ao céu com sua copada esparsa e rala, feita de grossos galhos tortuosos e sua pele de casca rugosa de milhares de fendas e sulcos. Pela grande árvore descem dezenas de cipós em busca do solo raso. Aqui e ali, em profusão, se acotovelam nos vãos e forquilhas, as bromélias, samambaias, as orquídeas, as jibóias, os musgos e os líquenes todos disputando, milímetro a milímetro, um espaço vital para suas consciências. Mesmo sendo pessoas ignorantes nesses assuntos, podemos facilmente perceber as diferenças entre elas, suas variedades e os matizes diferentes de cores, formatos e tamanhos. Milhares de formigas e insetos moram nessa mãe, vivendo suas vidas e seus ciclos muitas vezes sem nunca descer ao chão. Sem que possamos vê-los, bilhões e bilhões de micro-organismos evoluem sobre e abaixo de todo esse corpo gigantesco, numa extensa relação de dependência e predação. Mais que um simples suporte ou esteio, essa mãe é um útero ao avesso de onde a vida da floresta brota e explode em cada átomo de superfície.

O poder da mãe é colocar ordem onde impera o aparente caos.

Outro dia, andando pela borda de uma floresta de matos verdes, encontrei uma velha senhora desse porte e nobreza. Ao lado dela me senti pequeno e perplexo. Ela se situava no topo de um pequeno morrote de areia, brotando em meio à folhagem e arbustos mais rasteiros que cresciam ao abrigo da sombra de sua majestade. O que me chamou a atenção foi sua copada de folhas secas e seu aspecto ferruginoso e doentio, embora as bromélias e jibóias ainda continuassem verdes. A impressão que passava é que ela estava morta de há poucos dias. Aproximei-me cauteloso por entre os matos até que cheguei a uma pequena clareira a seus pés e então compreendi o que estava se passando. Com o esforço de muitos homens, uma enorme cova tinha sido escavada para expor suas grossas raízes. Uma a uma, num paciente trabalho cirúrgico, elas tinham sido cortadas por um machado afiado. Suas entranhas e sua carne vermelha estavam expostas, vertendo aqui e ali seu sangue branco como leite. Aquela gigante estava por um fio de desabar, sustada apenas por algumas raízes ainda preservadas e por algumas cordas que descobri amarradas em outras árvores menores, de modo a impedi-la de tomar uma queda não controlada. Sua história de mãe tinha sido bruscamente interrompida e com ela a história de todas as outras mães que com ela mantinham estreitas relações. A sensação de impotência e vergonha por pertencer a uma raça de predadores tão eficiente me vergou a espinha de tal forma que entrei naquela grande cova e sentei na areia úmida, embaixo dos grandes tocos de raízes vermelhas ainda gotejantes.

Em minha inútil desolação não chorei, porque de nada minhas lágrimas a ajudariam, antes apenas me aliviariam os pensamentos confusos que se chocavam no meu coração. Fiquei ali inerte e talvez mesmo tenha rezado uma prece sem palavras claras, uma dessas orações que fazemos e nem percebemos que fazemos. As orações do coração não precisam palavras.

Nessa prece calada acho que perdoei os mateiros que fizeram aquele serviço sujo e o dono daqueles matos verdes que os pagou. Dei razão às suas razões porque estão metidos, como todos nós, em um mundo de razões e urgências do qual fazemos parte integrante e inalienável. De alguma forma, por mais estranhos que tenham sido os caminhos, acreditei que nossas mãos empunharam aquele machado, nossas mãos contaram o dinheiro do salário, nossos ouvidos permaneceram surdos.

Minha prece muda vagou por aqueles matos silenciosos que não dizem palavras, além de estalidos, do barulhar de pios e o farfalhar do vento por entre as folhas e se misturou ao contínuo discurso sobre a vida que ali se pode ouvir, todos aqueles que quiserem ouvir. Do fundo daquela cova, olhava a gigante como um enorme edifício ameaçadoramente suspenso no ar, tão frágil quão maciço e colossal.

“Obrigado mãe, por tua vida, por tua existência, por tua generosidade sem limites. Obrigado por tuas lições silenciosas, pelo aprendizado que nos destes, pelas chances que nos criastes. Obrigado pela sombra, pelos frutos sementes de outras mães, pelo descanso, pelo abrigo e comida a todos quanto se aproximaram de ti. Obrigado, por tua visão acima de todas as copas, como um farol em meio ao mar escuro, teu olhar em todas as direções, sob o sol ou nas madrugadas sem lua. Obrigado por todas as vidas que nos destes, por todas as estórias que construístes e que jamais chegaremos a conhecer.”

“Obrigado por todas as lições de humildade que nos passastes e que neste último e derradeiro ato nos deixa como sua maior lembrança. Obrigado pelo teu silencio enquanto morres e eu vivo. Obrigado pelo teu perdão das nossas ações impensadas, por nos ajudar a refletir sobre as nossas incoerências e a juntar as partes perdidas das nossas razões.”

“Quando amanhã, finalmente tombares ao solo e deres teu corpo inerte como alimento a teus filhos invisíveis e nada mais restar de mãe em tua natureza, lembra-te de nós. Estaremos aqui, solitários e inseguros, na vastidão dos desertos de florestas de matos verdes.”

Henrique Natividade

Henrique Natividade
Enviado por Henrique Natividade em 22/12/2004
Código do texto: T737