Marinheiros de Pitangui
Caros leitores, conseguem fazer alguma ligação entre Pitangui e a mitológica Fenícia? Aparentemente, não há.
Pitangui, afastada cerca de 700 km do Atlântico, encastoada nas serras do centro-oeste mineiro, oferecia praias de água doce em rios, córregos e açudes onde se aprendia a nadar. Poucos conterrâneos conheciam o oceano, a não ser nas sessões do Cine Pitangui. Era comum encontrar rapazes, já entrando na dezena dos vinte anos, conhecedores apenas das prainhas da Maria Garupa, no Brumado, ou do Areião, no Velho da Taipa.
Os mais antigos demoraram muito para conhecer a água salgada de Guarapari ou Marataízes. Eu, por exemplo, só fui ver o mar em Vitória, no ano de 1970, junto com Paulo Miranda. Fiquei maravilhado com a beleza daquela imensidão, céu e mar se encontravam, as ilhas pareciam castelos dependurados no céu.
Já a Fenícia era a terra dos comerciantes e marujos, os fundadores de Cartago, que chegou a ameaçar o poderoso Império Romano. Os fenícios são, também, os responsáveis por outras façanhas incríveis, como fazer a primeira circunavegação da África. A propósito, quem quiser navegar com esses aventureiros pelas costas africanas pode ver no Youtube uma série de vídeos chamada "Expedição Fenícia".
Bom, mas o que é que os fenícios teriam a ver com Pitangui? Explico: a Fenícia se situava onde hoje estão Síria e Líbano. Os sírios e libaneses descendem dos fenícios. "Nossos" fenícios chegaram a Pitangui no começo do século XX. Conheci alguns: Esperidião Cecin, Antônio Bejjani, Calixto Morais, José Nazar e Dona Montaha, pais e avós de muitos de nossos amigos. São nossos queridos "turcos", hoje parte inseparável da história da Sétima Vila do Ouro.
Não sei se, embalada por essas influências, Pitangui esteve a um passo de se tornar uma terra de marujos. Foi no já longínquo ano de 1967. Um jornal publicou a notícia de concurso para entrar na marinha brasileira. Uns colegas de ginásio se ajuntaram e foram a Belo Horizonte inscrever-se para grumete, o cargo em questão. Não sabiam nem o que era, mas a justificativa irrefutável era:
- Vamos conhecer o mundo e ganhar pra isso.
O local de inscrição foi o DI, Departamento de Instrução da Polícia Militar de Minas Gerais, no Prado. Depois da inscrição, foram almoçar. Quem tinha parentes foi filar a bóia, quem não tinha comeu um KAOL por ali mesmo. Ah, sim, KAOL: carne, arroz, ovo e linguiça. Depois, era pegar o ônibus da Santa Maria na rodoviária e matar a saudade de "quase" um dia longe do torrão natal.
Os entusiasmados futuros grumetes eram: Marco Antônio Severino, o famoso Nonoca; Marco Antônio Saldanha, o maior ponta-direita do time do Zé Emídio; Matosinhos Alves da Silva, o saudoso Matu Bom de Bola; Rômulo Campos Ferreira, o "minino do Zilu", hoje comerciante de sucesso em Divinópolis; Gilberto Becô (naquela época "Gilberto do Zé Ingrês"), professor de Educação Física, juiz de futebol, e este que vos escreve, então mais conhecido como "Bolinha" ou "Ilho do Dininho".
Fizeram a inscrição, mas fazer a prova mesmo e passar parece que só o Becô. Porém, não tomou posse. A culpa era de Pitangui e seus atrativos: Clube Velho, Centro Social, carnavais, CAP, PEC e namoradas. As ambições marítimas ficariam para depois.
Caso tivéssemos passado, tomado posse e iniciado as viagens pelo mundo, o dialeto pitanguiense teria se internacionalizado e incorporado termos e gírias náuticas; as paredes de nossas casas teriam fotos de almirantes, navios, lemes e, de vez em quando, organizaríamos competições de nós de marinheiro.
Muito tempo depois, já com a sensatez da maturidade, o Becô e o Rômulo acham que a Marinha brasileira não perdeu muito com a desistência desses aventureiros quase imberbes. Talvez, tenha ganhado, comentam.
Diz o Becô:
- Não ia prestar. Sinuca, carteado, paqueras e otras cositas iam fazer de nós péssimos grumetes. Mas ia ser legal: um navio comandado por nautas pitanguienses, verdadeiros marinheiros de água doce.
De minha parte, lembro que imaginei por muitos dias que andava vestido de uniforme azul e branco e boina, medalhas no peito e nos ombros, que nem um general soviético. Tinha guardado na memória a imagem do tio José Maria, ex-marinheiro, quando chegou de férias do Rio de Janeiro naquele garboso uniforme.
No entanto, apesar dos atrativos, não voltei para as provas. Na cabeça, além da boina imaginária de marinheiro, tinha amores, futebol e farras me esperando Se passasse, perderia aquilo tudo.